"There's a fear I keep so deep / Knew it name since before I could speak (...) If some night I don't come home / Please don't think I've left you alone"- Keep The Car Running, Arcade Fire

quarta-feira, 2 de março de 2011

A descarga

Adorava cagar e se masturbar. Não, não fazia isso de qualquer maneira: era um ritual. Primeiramente, só se deixava levar pelo “prazer” quando ninguém estava em casa – tinha uma filha, e morava junto com os pais e a esposa. Precisava estar só, e no banheiro. Ah, o banheiro. Como gostava de fechar a porta, tirar a roupa e sentar no vaso sanitário. Fazia aquilo com um sorriso indisfarçável no rosto inchado – era obeso por completo, mórbido até. Seu grito de liberdade era composto de duas palavras. Merda e porra. Só de pensar já começava a peidar horrores, e a cueca, quase sempre manchada de fezes na parte dos fundos, ganhava líquidos pré-espermáticos também na parte da frente, esta, já rabiscada por pingos de urina. Uma tela pintada com cores – e odores – nada memoráveis. Algo que qualquer um gostaria de esquecer... Mas não ele.

Aquele sábado não dava pistas de que seria um dia diferente. Os pais foram fazer compras numa loja de roupas de terceira categoria – adoravam pechinchar aos finais de semana, qualquer tipo de coisa. A esposa, que vivia reclamando de tudo e de todos, resolveu ir ao salão de beleza, para fazer as unhas e retocar novamente o cabelo – as mechas loiras já não conseguiam esconder alguns fios prateados que teimavam em crescer. Estava só. Era hora de diversão. Levantou-se do sofá cheirando a mofo e, em oito passos, já estava dentro do banheiro. Encostou a porta lentamente. Apertou o botão do interruptor. Luz. Olhou o espaço. Uma pia simples, com uma torneira que vivia deixando escapar gotas e mais gotas. Acima, um espelho embaçado, revelador de uma imagem que já não o deixava feliz ou triste: era um nada, no meio do nada, indo para o nada. Nada em particular.

Perto do chuveiro – três temperaturas: quente, morno e frio –, escondido por uma cortina adornada com desenhos de flores e plantas, ficava o vaso. O trono. A cura para todas as suas tristezas e decepções. Era lá que depositava seus desejos mais secretos... E seu quinhão mais repugnante. Tirou a camisa e a bermuda de um jeito mais rápido do que o habitual. Sentou-se. Fechou os olhos. Suspirou vagarosamente. Um ruído gutural saindo de sua boca... E de seu ânus. Tocou o pênis, já endurecido pela certeza de que gozaria. Começou. Não pensava em nada de especial nesses momentos. Relembrava de algumas mulheres que havia visto, passeando pelas ruas da cidade. Imaginava-se com elas, transando, levando-as ao orgasmo em apenas algumas estocadas. Era um mestre na arte de foder, ao menos, nos seus pensamentos. Assim que a excitação dava pistas de que se transformaria num gozo, começava a defecar. Muito. Já não conseguia segurar o esperma. Era a hora. Seu grand finale consistia num último movimento. Quando o primeiro jato de sêmen esguichava de seu membro, levantava-se do vaso, ainda com as fezes deslizando de seu rabo. Pedaços de cocô mergulhando na imensidão restrita da água da privada. Porra opaca voando, aterrissando de forma certeira num pedaço de papel higiênico que a mão esquerda segurava. A filha de 13 anos abrindo a porta, de forma veloz, vislumbrando o pai naquela situação.

Silêncio sepulcral. Em seguida, tapas no rosto da filha. “A porta não estava trancada, pai!”, berrou a menina – lágrimas e sangue escorrendo. Um empurrão com toda a força que conseguiu reunir jogou sua garotinha longe, direto para a sala. Perdeu o equilíbrio e a cabeça tocou o chão. Um barulho forte foi ouvido – até pelos vizinhos do apartamento abaixo. Tombou com os olhos ainda abertos, expressão de terror colada na face jovem. Ele se desesperou. Gritava palavras desconexas, com as mãos na cabeça, completamente nu. Tentou acordá-la, mas não teve sucesso. Pensou em ligar para o hospital, para os bombeiros, mas não sabia o que iria dizer caso perguntassem a ele como tudo aconteceu. Subitamente, parou de gritar. Afastou-se do corpo imóvel de sua princesinha e, passando a mão esquerda pelos olhos, limpou as lágrimas que lá se encontravam. Virou de costas para a filha e caminhou, anestesiado. Entrou no banheiro.

Havia esquecido de apertar o botão da descarga.  

          

Por Hugo Oliveira

4 comentários:

  1. O q q tá acontencendo com você e o Tino? Textos bizarros com finais trágicos. Bons, mas pesados demais. Cadê o pop, e as canções de amor?
    Abçs

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  2. Pop e canções de amor? Logo, logo, mano! Abraços!

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  3. Escatológico demais. Concordo c/ Cadu, voltem p/ o lirismo urgente.

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  4. Muito bom! Um texto que lança uma luz sobre o submundo da exclusão e perversão sexual, que caminham juntas se retroalimentando na direção do fundo do poço. Vez em quando, elas vêm à tona em forma de tiros e espancamentos.

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