Odiava sua vida. A casa onde morava, seu marido gordo e apático, seus sogros idiotas... A única coisa que a fazia sorrir era sua filha. Linda. Aos 13 anos, assemelhava-se demais com ela. Os olhos grandes e vivos, os cabelos loiros e sedosos, a vivacidade que ela também tinha, na pré-adolescência. Era bater os olhos na menina e ter vontade de chorar, chorar de amor. Como Deus havia permitido que ela gerasse uma criatura tão iluminada, tão pura? Será que Ele também deixaria correr solto todo o processo que transforma pessoas alegres em seres desiludidos? Em humanos tristes, amargos? Não sabia. Também não ia saber: havia decidido morrer naquele dia.
Antes do caixão, o “carão” – havia descoberto essa expressão através das amigas de copo. Marcou hora no salão de beleza mais próximo de sua casa, apesar de nunca ter visitado o estabelecimento – sábado, às 15h. Iria dar um trato nas unhas e pintar os cabelos já não tão loiros. Na bolsa que carregava no caminho para o salão, além de contas, maços de cigarro vazios, calendários idiotas e um pequeno embrulho, uma carta. Endereçada à filha.
Amor da mamãe,
Peço desculpas por tudo o que estou fazendo você passar. Eu juro que eu não queria que fosse assim, mas vai ser melhor para todos. Não consigo mais viver desse jeito. Seu pai e seus avós não me entendem, não me respeitam e não me enxergam como gente. Já tentei conversar com eles, abrir o jogo, mas não dá: é impossível viver tranquilamente nessa casa. É por isso que sua mãe faz aquilo que você me viu fazer. Não é certo, eu sei que não, mas, quando eu fico nervosa, é a única maneira de conseguir esquecer de tudo. Menos de você, meu amor. Te amo mais do que tudo nessa vida. Sempre vou amar. Tudo o que eu peço é que você não fique triste. Que continue vivendo a sua vida, estudando, brincando com suas amigas... Que seja muito feliz, pois eu sei que você será. Não sei se o que estou fazendo é certo, mas acho que tem que ser assim. Os beijos mais amorosos do mundo para a minha princesa.
Eu te amo!
Beijos da sua mãe, que tanto te ama.
– Eu acho que se a senhora cortar bem curtinho, vai ficar lindo – Disse a cabeleireira, sorrindo.
– A senhora está no céu, queridinha. Curtinho porra nenhuma. Só quero pintar, para que os cabelos brancos não apareçam – retrucou, sem transparecer qualquer tipo de sentimento em sua voz.
A moça, completamente sem graça, fez o que a cliente pediu. Sentiu-se mal, humilhada, pequena... Mas foi profissional. Ainda teria que aguentar aquela mulher grossa por mais um tempo, já que ela também pintaria as unhas dos pés e das mãos.
Enquanto recebia a tintura em seus cabelos, ela reparou no espelho à sua frente. Era grande, limpo, mas não era isso que chamava a sua atenção. Fotos. Dezenas delas. Na maioria das imagens, duas pessoas: a cabeleireira intrometida e uma menina. As fotografias foram tiradas em situações e lugares diferentes. Nas aparentemente mais antigas, a mulher aparecia com a menina ainda no colo, num lugar parecido com um hospital. O bebê não parecia muito bem, e apesar da qualidade precária de algumas fotos, dava para notar que a criança sofria de alguma doença. Ao longo dos cliques, ficava claro que se tratava de um bebê que necessitava de cuidados especiais: conforme a criança ia crescendo, nas fotos, a evolução era acompanhada por detalhes tristes. Uma cadeira de roda aqui, um respirador artificial acolá... Coitadinha. A cabeleireira, por sua vez, não parecia abalada com aquilo. Estava sempre sorrindo. Independente da situação mostrava-se feliz, radiante até. Vasculhou o espelho, de cabo a rabo, mas não conseguiu encontrar um resquício de tristeza ali.
Seu coração amoleceu naquele momento. Lembrou-se da filha. Não conseguiu conter as lágrimas. A cabeleireira, notando que algo não ia bem, perguntou se ela estava se sentindo mal. Fez que não com a cabeça e, passando o dedo indicador da mão direita pelas fotos, recebeu uma explicação da profissional.
– Ah, essa é a minha filhona. Ela sofre de uma doença muscular muito rara, mas eu tento fazer com que a vida dela seja a melhor possível. Ela me traz muita, muita felicidade. É o amor da minha vida, e mesmo se ela tivesse nascido saudável, a trataria do mesmo jeito, “corujona”, sem sair do lado dela pra nada –, declarou a moça, sem deixar de pincelar o cabelo da cliente com as últimas partes da tinta.
Foi demais para ela. Aproveitando que a substância para colorir seu cabelo já havia sido totalmente utilizada, pediu para ir ao banheiro, a voz embargada. Apesar de não ter entendido o motivo do choro, a cabeleireira apontou um corredor à esquerda. Segui até lá e deu de cara com uma porta pintada de rosa. Entrou no recinto rapidamente, mas não se esqueceu de trancar a porta. A primeira coisa que fez foi abrir a bolsa. De lá, tirou a carta que deixaria para a amada filha. Rasgou em pedaços bem pequenos, e jogou a papelada toda na privada. Depois, foi a vez do embrulho. Ao abrir, deu uma boa olhada na seringa. Cheia, até o talo. Lá dentro, uma dose cavalar de heroína. Overdose na certa. Despejou o líquido no vaso, em meio a um sorriso que se misturava com lágrimas e baba. Estava decidida: não ia se matar. Sua filha não merecia isso. Depois de se desfazer de todo o líquido, desmontou o aparelho que carregava a “injeção letal” e procurou uma lixeira para se livrar daquilo. Não achou. Sem pensar, jogou a seringa, peça por peça, na privada.
Saiu do banheiro sentindo uma força sobre-humana dentro do peito, e uma vontade desesperadora de ver a filha, que tinha ficado em casa com o pai. Sorriu para a cabeleireira, pagou pelo serviço – que nem havia terminado – e correu desajeitadamente: estava indo para casa.
Mal percorreu alguns metros e lembrou que havia esquecido de dar a descarga, no salão de beleza.
Não importava. Estava viva. Logo, estaria abraçando o amor de sua vida. Sua filha.
Voltou a correr.
Por Hugo Oliveira
Nenhum comentário:
Postar um comentário