Sempre digo que todo vascaíno deve se orgulhar tanto quanto das façanhas de Roberto Dinamite, Edmundo, Juninho Pernambucano e tantos outros protagonistas da bela história do clube, de ter entre seus torcedores Paulinho da Viola e Aldir Blanc. O primeiro, a elegância suprema do samba, e o segundo, uma das figuras mais admiráveis do Brasil. Representante de uma boemia que não existe mais, Aldir poderia constar nos verbetes dos dicionários como perfeita definição do que é ser carioca.
Sempre imaginei o quanto deveria ser divertido tomar uns chopes com o autor de clássicos da música brasileira como ‘Dois pra lá, dois pra cá’, ‘O bêbado e a equilibrista’, Kid Cavaquinho’, entre tantas outras. Todo mundo tem seu momento preferido de Aldir. Meu pai gosta muito do lindo poema ‘Choro para bandolim’, escrito em homenagem a filha falecida, eu sou apaixonado por um samba chamado ’50 anos’, e meu amigo Cecel sempre cita o ‘Poemíscuo’, que faço questão de transcrever:
“Faz escuro mas eu cancro,
Vou-me embora de Pasárgada
Lá, me funiquei com o Rei:
chutei uma drag queen,
sobre o peixe vomitei.
Que as belas sirvam a Vinicius
pra fazer letra com o Tom.
Cu de empregada é que é bom.”
Há cerca de dois meses, estava com outro grande amigo, Cadu, esperando para entrar no show do Cidadão Instigado. Conversávamos sobre as letras do Cadáver pega fogo durante o velório, passamos por Lupicínio, quando ele diz que eu precisava ouvir um disco do Aldir Blanc de 2005, chamado Vida Noturna. E na hora mesmo recitou a letra de uma das canções, ‘Lupicínia’.
Já gostando dos versos de cara e sempre atento às excelentes recomendações do Cadu, fui logo atrás do disco. E foi paixão à primeira audição, um disco maravilhoso e que só cresce à medida que conheço melhor cada canção. É um disco forte, uma coleção de sambas-canções, boleros, com violões e pianos delicados, em que Aldir, com sua voz, confere ora gravidade, ora humor, melancolia ou desilusão aos seus versos.
E é justamente nas letras das canções que se encontra o diferencial. Confesso que chega a dar inveja, como eu queria conseguir escrever como Aldir Blanc!! O autor consegue circular entre um lirismo extremamente poético e momentos pesados em crônicas de um cotidiano não só carioca, mas universal. Comum a qualquer um que tenha vivido as agruras da vida e não perde a capacidade de se emocionar.
É até difícil escolher momentos preferidos para citar aqui. Há ‘Dois bombons e uma rosa’ em que o amante congratula a mulher pela escolha sensata de ter se casado, mas adverte para que a mesma não comente o passado pois “não há xampu, não a creme que apague ou que desmarque da tua pele o meu beijo fedendo a conhaque”. A já citada ‘Lupicínia’, espécie de crônica sobre uma enfermeira “com a chama vital de Ana Karenina”, e aos que criticam a citação a Tolstoi, o eu-lírico já rebate: “Ô trouxa, heroínas sem par podem brotar na Rússia ou lá em Água Santa...”. Uma beleza!!
Outro destaque é “Recreio das Meninas II”, uma bem humorada reflexão sobre envelhecer sem perder o essencial. Nesta, o senhor vai de bengala, tossindo, ao samba (“a cura de sua doença”), dá uma cantada numa mulher bem mais moça e ao ser minimamente correspondido (“um riso de aurora acolheu meu ocaso”), a pressão sobe e nosso amigo se esbalda. E nesse renascimento no Renascença, Aldir arremata, mais uma vez certeiro: “Aos que me gozam no bar, dizendo que eu sou o Recreio das Meninas, respondo: - Andorinhas fazem ninho nas ruínas.”
Outra favorita desde a primeira audição é “Dry”, em que o autor dá voz a uma mulher amargurada em uma letra irrepreensível narrando o fim de “um amor de trapaça e de tara, de beijo na nuca, de tapa na cara”. E mais uma vez não posso deixar de transcrever os geniais versos que encerram a canção:
“Hoje somente se bebo o dia seguinte pode me afetar
É que a secura me lembra teu jeito de amar.”
É que a secura me lembra teu jeito de amar.”
E o disco fecha com “Resposta ao Tempo”, letra de Aldir para música de Cristóvão Bastos, que inclusive é o arranjador do disco e, como sempre, faz um trabalho magnífico. E é com essa que encerro este texto, de uma forma mais bonita do que eu jamais sonharia em conseguir com minhas palavras:
- É o tempo
Eu bebo um pouquinho pra ter argumento
Mas fico sem jeito, calado
Ele ri
Ele zomba de quanto eu chorei
Porque sabe passar e eu não sei
Num dia azul de verão, sinto vento
Há folhas no meu coração, é o tempo
Recordo um amor que eu perdi
Ele ri
Diz que somos iguais, se eu notei
Pois não sabe ficar e eu também não sei
E gira em volta de mim
Sussurra que apaga os caminhos
Que amores terminam no escuro
Sozinhos
Respondo que ele aprisiona,
Eu liberto
Que ele adormece as paixões
E eu desperto
E o tempo se rói com inveja de mim
Me vigia querendo aprender
Como eu morro de amor pra tentar reviver
No fundo é uma eterna criança
Que não soube amadurecer
Eu posso, ele não vai poder
Me esquecer"
Por Ricardo Pereira
Lindo texto: a altura do lindo disco. Parabéns, amigo.
ResponderExcluirExceto o poemíscuo, de muito mal gosto, resposta ao tempo é uma das canções mais lindas que eu conheço!!
ResponderExcluirVelu Cadu, e obrigado pela dica!
ResponderExcluirOi Norielem, os dois mostram o quanto Aldir Blanc consegue transitar entre extremos. Acho que o 'mau gosto' ali é proposital e funciona bem, fica engraçado. 'Resposta ao tempo' é uma pérola mesmo. Assim como a citada '50 anos' (conhece?) e 'Amigo é pra essas coisas' que é uma de minhas preferidas e esqueci de citar. Ele tem muita coisa boa.
"Disse ao garçom que quero que ela morra..." Isso é muito "boteco carioca"! Muito bom, Latinoso!!!
ResponderExcluirRs, achei graça não Ricardo :-0, só acharia se fosse um poemíscuo feminista. Quanto a estas outras canções, ainda não conheço, mas vou conferir!!! Valeu a dica!!!
ResponderExcluirAlém de tudo o cara é médico psiquiatra. Imagine uma terapia com ele. Abaixo outra Pérola p/ compartilhar:
ResponderExcluirCatavento e Girassol
(Guinga - Aldir Blanc)
Meu catavento tem dentro o que há do lado de fora do teu girassol
Entre o escancaro e o contido, eu te pedi sustenido e você riu bemol
Você só pensa no espaço, eu exigi duração
Eu sou um gato de subúrbio, você é litorânea
Quando eu respeito os sinais vejo você de patins vindo na contramão
Mas quando ataco de macho, você se faz de capacho e não quer confusão
Nenhum dos dois se entrega, nós não ouvimos conselho
Eu sou você que se vai no sumidouro do espelho
Eu sou do Engenho de Dentro e você vive no vento do Arpoador
Eu tenho um jeito arredio e você é expansiva, o inseto e a flor
Um torce pra Mia Farrow, o outro é Woody Allen
Quando assovio uma seresta você dança havaiana
Eu vou de tênis e jeans, encontro você demais, escarpin soireé
Quando o pau quebra na esquina, cê ataca de fina e me ofende em inglês
É fuck you, bate bronha e ninguém mete o bedelho
Você sou eu que me vou no sumidouro do espelho
A paz é feita num motel de alma lavada e passada
Pra descobrir logo depois que não serviu pra nada
Nos dias de carnaval aumentam os desenganos
Você vai pra Paraty e eu pro Cacique de Ramos
Meu catavento tem dentro o vento escancarado do Arpoador
Teu girassol tem de fora o escondido do Engenho de Dentro da flor
Eu sinto muita saudade, você é contemporânea
Eu penso em tudo quanto faço, você é tão espontânea
Sei que um depende do outro só pra ser diferente, pra se completar
Sei que um se afasta do outro, no sufoco, somente pra se aproximar
Cê tem um jeito verde de ser e eu sou meio vermelho
Mas os dois juntos se vão no sumidouro do espelho
Além de tudo o cara é médico psiquiatra. Imagine uma terapia c/ ele. Abaixo mais uma Pérola p/ compartilhar:
ResponderExcluirCatavento e Girassol
(Guinga - Aldir Blanc)
Meu catavento tem dentro o que há do lado de fora do teu girassol
Entre o escancaro e o contido, eu te pedi sustenido e você riu bemol
Você só pensa no espaço, eu exigi duração
Eu sou um gato de subúrbio, você é litorânea
Quando eu respeito os sinais vejo você de patins vindo na contramão
Mas quando ataco de macho, você se faz de capacho e não quer confusão
Nenhum dos dois se entrega, nós não ouvimos conselho
Eu sou você que se vai no sumidouro do espelho
Eu sou do Engenho de Dentro e você vive no vento do Arpoador
Eu tenho um jeito arredio e você é expansiva, o inseto e a flor
Um torce pra Mia Farrow, o outro é Woody Allen
Quando assovio uma seresta você dança havaiana
Eu vou de tênis e jeans, encontro você demais, escarpin soireé
Quando o pau quebra na esquina, cê ataca de fina e me ofende em inglês
É fuck you, bate bronha e ninguém mete o bedelho
Você sou eu que me vou no sumidouro do espelho
A paz é feita num motel de alma lavada e passada
Pra descobrir logo depois que não serviu pra nada
Nos dias de carnaval aumentam os desenganos
Você vai pra Paraty e eu pro Cacique de Ramos
Meu catavento tem dentro o vento escancarado do Arpoador
Teu girassol tem de fora o escondido do Engenho de Dentro da flor
Eu sinto muita saudade, você é contemporânea
Eu penso em tudo quanto faço, você é tão espontânea
Sei que um depende do outro só pra ser diferente, pra se completar
Sei que um se afasta do outro, no sufoco, somente pra se aproximar
Cê tem um jeito verde de ser e eu sou meio vermelho
Mas os dois juntos se vão no sumidouro do espelho
Porra, faria fácil uma terapia com ele. Uisquinho, conversa fiada, ia sair bonzinho de toda sessão haha
ResponderExcluirPai, não conhecia essa aí não! Muito boa!!
Ah, eu não faria terapia com ele, não... rs... certamente iria sair mais pirada e com o coração mais destroçado, se fosse o caso, né?!!! Mas tomaria aquele shopinho numa roda de bate-papo com vocês, ia ser o máximo!!!
ResponderExcluirAdoro as músicas dele! Das que você citou "Resposta ao tempo" é genial, "Cinquenta anos" é linda... e todas são maravilhosas, gosto muito do estilo dele: essa mistura de drama, sensualidade e malícia... e tem mesmo esse tom de crônica nas suas letras, que ainda não tinha pensado por aí...
Deixo uns versos bonitos para mais uma reflexão sobre o amor, de "Altos e baixos":
"Ah, mas há que se louvar,
entre altos e baixos
o amor quando traz tanta vida
que até pra morrer
leva tempo demais"
Beijos!