"There's a fear I keep so deep / Knew it name since before I could speak (...) If some night I don't come home / Please don't think I've left you alone"- Keep The Car Running, Arcade Fire

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Nem sempre se pode ser Deus - John Lennon, por Philip Norman

A algumas histórias sou capaz de retornar com frequência. É sempre um renovado prazer assistir a Godfather, Manhattan ou Sopranos; fundamental reler Grande Sertão: Veredas, os Borges, Saramagos ou os primeiros contos do Rubem Fonseca. E nesse grupo, incluo as histórias de dois pilares fundamentais da minha formação: os Beatles e Bob Dylan.

Por isso, ainda que já tenha lido dezenas de biografias, artigos, reportagens e ensaios sobre os Beatles, lancei-me com sofreguidão à leitura de John Lennon, extensa biografia escrita por Philip Norman, como se nada soubesse da trajetória do biografado.

Com relação à infância, sua criação e os anos Beatles são poucas as novas informações, mas é ótimo “reviver” os bastidores de gravações e processo criativo dos álbuns e canções que mudaram o jeito de se pensar a música popular em todo o mundo. Como a história da banda é contada aqui tendo Lennon como foco, temos acesso ao incômodo com as privações que o sucesso exagerado trouxe; o quanto toda a blindagem e o meticuloso aparato de marketing que envolvia os Beatles foram minando a satisfação de John em fazer música e até na vida pessoal e também a dificuldade em lidar com algo que se transformou não apenas em uma banda, mas numa entidade muito maior e mais significativa do que qualquer ser humano teria condições de carregar e manter “funcionando”.

E o que mais me atraiu no livro foi justamente a humanidade com que John Lennon é retratado, sem o endeusamento ao qual o compositor foi submetido após sua morte prematura. Foi conveniente para o mundo que Lennon passasse a ser retratado como um modelo de espiritualidade e perfeição, um Jesus contemporâneo a caminhar – barbudo e cabeludo – entoando a Verdade em versos de canções como “Give peace a chance” ou “Imagine”, um sujeito abnegado e superior que largou toda a riqueza de ser um beatle por amor a uma mulher fora do padrão de beleza vigente. Um santo, enfim.



Mas sabemos que não é nada disso. E o livro mostra todas as contradições do homem John Lennon, seu fascínio pelo mórbido, bizarro e escatológico; sua atração/repulsão por pessoas deficientes, que o fazia imitar seus trejeitos inclusive no palco durante o auge da beatlemania; sua inveja e vontade de se sentir superior a seus parceiros/concorrentes musicais; uma ganância talvez excessiva em uma época em que já possuía muito materialmente e, sobretudo, uma carência, insegurança e vulnerabilidade desmedida presentes durante toda a vida.

E aí está o grande mérito de Philip Norman, mostrar que o sujeito foi um artista genial sim, mas também um homem repleto de falhas e defeitos, assim como eu e você. Alguns desses defeitos inclusive podem ter sido responsáveis pela grande empatia causada por suas canções, que deram voz a inseguranças, raivas, melancolias e inadequações parecidas com as suas ao redor do mundo, como especula seu filho Sean, em determinado momento.

O livro peca em não se aprofundar em sua discografia solo. Gostaria de mais detalhes de composição e estúdio de seus álbuns da década de 1970, assim como há com os dos Beatles. Entretanto, é um pequeno defeito frente à necessária desmistificação e ao retrato por vezes naturalista propostos pelo livro, sem, no entanto, deixar de lado a mágica criativa de uma das personalidades fundamentais do século passado. Um cara que soube colocar coração em cada nota, acorde e palavra escrita e cantada. O que não pode ser feito em vão, em um mundo como o nosso, sem ser transformado em um alvo ambulante. Nesse caso, literalmente.

... por isso estou gritando!
Por Ricardo Pereira

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