A algumas histórias sou capaz de
retornar com frequência. É sempre um renovado prazer assistir a Godfather, Manhattan ou Sopranos;
fundamental reler Grande Sertão: Veredas,
os Borges, Saramagos ou os primeiros contos do Rubem Fonseca. E nesse grupo,
incluo as histórias de dois pilares fundamentais da minha formação: os Beatles
e Bob Dylan.
Por isso, ainda que já tenha lido
dezenas de biografias, artigos, reportagens e ensaios sobre os Beatles, lancei-me
com sofreguidão à leitura de John Lennon, extensa biografia escrita por Philip
Norman, como se nada soubesse da trajetória do biografado.
Com relação à infância, sua
criação e os anos Beatles são poucas as novas informações, mas é ótimo “reviver”
os bastidores de gravações e processo criativo dos álbuns e canções que mudaram
o jeito de se pensar a música popular em todo o mundo. Como a história da banda
é contada aqui tendo Lennon como foco, temos acesso ao incômodo com as
privações que o sucesso exagerado trouxe; o quanto toda a blindagem e o meticuloso
aparato de marketing que envolvia os Beatles foram minando a satisfação de John
em fazer música e até na vida pessoal e também a dificuldade em lidar com algo
que se transformou não apenas em uma banda, mas numa entidade muito maior e
mais significativa do que qualquer ser humano teria condições de carregar e
manter “funcionando”.
E o que mais me atraiu no livro
foi justamente a humanidade com que John Lennon é retratado, sem o endeusamento
ao qual o compositor foi submetido após sua morte prematura. Foi conveniente
para o mundo que Lennon passasse a ser retratado como um modelo de
espiritualidade e perfeição, um Jesus contemporâneo a caminhar – barbudo e
cabeludo – entoando a Verdade em versos de canções como “Give peace a chance”
ou “Imagine”, um sujeito abnegado e superior que largou toda a riqueza de ser
um beatle por amor a uma mulher fora do padrão de beleza vigente. Um santo,
enfim.
Mas sabemos que não é nada disso.
E o livro mostra todas as contradições do homem John Lennon, seu fascínio pelo
mórbido, bizarro e escatológico; sua atração/repulsão por pessoas deficientes,
que o fazia imitar seus trejeitos inclusive no palco durante o auge da
beatlemania; sua inveja e vontade de se sentir superior a seus parceiros/concorrentes
musicais; uma ganância talvez excessiva em uma época em que já possuía muito
materialmente e, sobretudo, uma carência, insegurança e vulnerabilidade desmedida presentes durante toda a vida.
E aí está o grande mérito de
Philip Norman, mostrar que o sujeito foi um artista genial sim, mas também um
homem repleto de falhas e defeitos, assim como eu e você. Alguns desses
defeitos inclusive podem ter sido responsáveis pela grande empatia causada por
suas canções, que deram voz a inseguranças, raivas, melancolias e inadequações
parecidas com as suas ao redor do mundo, como especula seu filho Sean, em
determinado momento.
O livro peca em não se aprofundar
em sua discografia solo. Gostaria de mais detalhes de composição e estúdio de
seus álbuns da década de 1970, assim como há com os dos Beatles. Entretanto, é
um pequeno defeito frente à necessária desmistificação e ao retrato por vezes
naturalista propostos pelo livro, sem, no entanto, deixar de lado a mágica
criativa de uma das personalidades fundamentais do século passado. Um cara que
soube colocar coração em cada nota, acorde e palavra escrita e cantada. O que
não pode ser feito em vão, em um mundo como o nosso, sem ser transformado em um
alvo ambulante. Nesse caso, literalmente.
... por isso estou gritando! |
Por Ricardo Pereira
Bravo!
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