"There's a fear I keep so deep / Knew it name since before I could speak (...) If some night I don't come home / Please don't think I've left you alone"- Keep The Car Running, Arcade Fire

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Borges II

Mais poemas de Jorge Luis Borges.


Louvação Da Quietude

Escrituras de luz investem na sombra, mais prodigiosas que meteoros.
A alta cidade irreconhecível avança sobre o campo.
Certo de minha vida e de minha morte, fito os ambiciosos e tento entendê-los.
Seu dia é ávido como o laço no ar.
Sua noite é trégua da ira do ferro, prestes a atacar.
Falam de humanidade.
Minha humanidade está em sentir que somos vozes de uma mesma penúria.
Falam de pátria.
Minha pátria é um lamento de guitarra, alguns retratos e uma velha espada,
a desvelada prece dos salgueiros nos fins de tarde.
O tempo está vivendo-me.
Mais silencioso que minha sombra, cruzo o tropel de sua exaltada cobiça.
Eles são imprescindíveis, únicos, merecedores da manhã.
Meu nome é alguém e qualquer um.
Passo devagar, como quem vem de tão longe que não espera chegar.


O Espelho

Quando menino, eu temia que o espelho
Me mostrasse outro rosto ou uma cega
Máscara impessoal que ocultaria
Algo na certa atroz. Temi também
Que o silencioso tempo do espelho
Se desviasse do curso cotidiano
Dos horários do homem e hospedasse
Em seu vago extremo imaginário
Seres e formas e matizes novos.
(Não disse isso a ninguém, menino tímido.)
Agora temo que o espelho encerre
O verdadeiro rosto de minha alma,
Lastimada de sombras e de culpas,
O que Deus vê e talvez vejam os homens.


Intimidade

 

Nem a intimidade de tua fronte clara como uma festa
nem o costume de teu corpo, ainda misterioso e tácito e de menina,
nem a sucessão de tua vida assumindo palavras ou silêncios
serão favor tão misterioso como olhar teu sonho envolvido
na vigília de meus braços.
Virgem miraculosamente outra vez pela virtude do sono que absorve,
calma e resplandecente como a alegria que a memória elege,
vais me dar essa margem de tua vida que tu mesma não tens.
Lançado no silêncio, fitarei essa praia última de teu ser
e hei de te ver pela primeira vez, quem sabe, como Deus há de ver-te,
a ficção do Tempo dissipada, sem amor, sem mim.


Despedida

Entre mim e o meu amor hão de se erguer
trezentas noites como trezentas paredes
e o mar será magia entre nós dois.

Nada haverá, senão lembranças.
Oh tardes que valeram a pena,
noites esperançosas de te ver,
campos de meu caminho, firmamento
que estou vendo e perdendo...
Definitiva como o mármore,
tua ausência entristecerá outras tardes.


Por Ricardo Pereira

2 comentários:

  1. lembro que só pensei "gênio, gênio!" qdo li, em "ficções", que "os espelhos e a cópula são abomináveis, porque multiplicam o número de homens"; antes disso, já tinha me encantado com o "unending gift", que, tempos depois, me
    emocionou novamente na referência a ele no final de "o cheiro do ralo". esses dias, revisando um programa, alguém citou "a biblioteca de babel do borges" e parei pra ler uns poemas dele. belo post.

    ResponderExcluir
  2. Oi Paulinha, gosto demais do Borges. É um dos maiores de todos os tempos pra mim. A mesma reação que você teve - "gênio, gênio" - tive ao ler 'As ruínas circulares', o primeiro conto dele que li e um de meus preferidos até hoje. Os poemas comecei a ler recentemente.

    Que bom que gostou!

    Bjs

    ResponderExcluir