Sexo, violência e artes plásticas
Quadro causa polêmica ao receber faixa de “censurado”
Por Hugo Oliveira
Desde o dia 3 de fevereiro, quando a exposição “Te amo” entrou em cartaz na Casa de Cultura, a imagem de uma mulher exuberante, em preto e branco, vem causando reações variadas àqueles que vislumbram a obra.
Fruto da imaginação – e do trabalho genuíno – do artista plástico Ícaro, o quadro em questão acabou sendo parcialmente vetado ao público por aludir ao sexo, já que a linda moça representada na tela está a “cavalgar” sobre um pênis. Resumo da “caliente” ópera: uma faixa confeccionada pelo próprio artista, com a palavra “censurado”, foi colocada sobre a obra, na parte considerada inapropriada. Enquanto isso, outro quadro, onde se vê um assustador revólver disparando um tiro – e uma poça de sangue – segue normalmente em exposição, livre de qualquer obstáculo visual ou restrição.
Como alguns já devem imaginar, a ligação entre as obras não é gratuita, e faz parte de um conceito explicado por Ícaro no texto que acompanha as imagens – aqui divulgado com correções ortográficas próprias deste jornalista. “Vamos tentar mudar um pouco as censuras da nossa sociedade puritana, arcaica e viciada em religião? Talvez você esteja assistindo neste momento à novela ‘Caminho das índias’, e observando as barbaridades cometidas por suas posturas diante de outro ser humano. Aqui em nosso país não é tão diferente, a violência está nos horários de censura livre, e o amor, o carinho e o sexo em suas formas mais plenas, explícitas, lúdicas e divertidas são tratados como pornografia, coisa do diabo ou pejorativos que valham; mas a violência, essa é vista em qualquer horário, em qualquer vídeo-game. Fale a verdade: o que é mais feio para você? A vida ou a morte? A violência ou o amor? O sangue na calçada ou levar o seu amor a uma viagem ao paraíso, fazendo escalas nas galáxias?”, escreveu Ícaro.
Nada impede que a escolha de muitos já seja tomada a partir deste ponto do texto. Mesmo assim, as palavras daqueles que estão direta ou indiretamente envolvidos com o episódio poderão ajudar no que diz respeito a uma conclusão mais embasada. Pelo menos, na teoria...
O “telefone vermelho” e a ligação que não existiu
Por causa dos “anos de chumbo” – 1964 a 1985 –, termo criado para definir o tempestuoso período em que os militares tomaram conta do país – olá, ditadura! –, governando-o por meio de atos institucionais que censuravam e também proibiam jornais, programas de rádio e manifestações artísticas, entre outros, qualquer menção à palavra estampada na faixa do quadro de Ícaro ainda acaba causando repúdio e curiosidade às pessoas. Uniu a censura ao sexo e à violência? Pronto: está organizado o “ménage à trois da polêmica”. O artista plástico que o diga. “Eu não tinha a menor dúvida de que o quadro criaria polêmica, tanto que, quando a diretoria da casa disse que queria falar comigo, eu já desconfiei sobre o que era”, informa, dando prosseguimento. “Antes de fazer, eu já estava imaginando que tipo de tarja eu ia colocar, se eu colocava em cima ou se eu colocava em baixo. Basicamente , o que eu deveria escrever era ‘censura livre’ – para quadro da violência – e ‘proibido para maiores de 18 anos’ – para o quadro que apresenta sexo”.
Mesmo já prevendo o que iria acontecer, Ícaro não queria que a pintura sofresse censura, fosse ela oficializada por ele próprio ou por aqueles que forneceram a possibilidade de expor seu trabalho ao público. O telefonema da diretoria da casa – que o criador da exposição acabou não recebendo –, na verdade, era de Mário dos Anjos, presidente da Fundação Municipal de Cultura, a Cultuar. É ele, que também é artista, que explica o que ia fazer caso Ícaro não arranjasse uma solução quanto à tela. “Se ele não colocasse a faixa de ‘censurado’, íamos fechar a Casa de Cultura e restringir a mostra apenas a maiores de idade. A exposição ia acontecer de qualquer jeito”, declara Mário, antes de revelar o que pretendia falar com Ícaro pelo telefone. “Eu ia conversar com ele, até porque passam crianças ali. É um local público, e eu não posso proibir a entrada das pessoas. Em todas as manifestações que acontecem na Casa de Cultura, nas que não são cobrados ingressos, temos que ficar de olho na classificação etária”.
Conseqüências do sexo – quer dizer, do quadro
Parece que não apenas para o presidente da Cultuar, mas para muitos que passaram e continuarão passando pela Casa de Cultura, a mostra “Te amo”, em especial, o “quadro-coito”, ganhou outra dimensão após a inclusão da palavra “censurado” no corpo da obra. E passou a suscitar debates. “A gente pensa de uma forma, mas a sociedades e as leis funcionam de outra maneira, com seus conceitos e pré-conceitos. Temos que andar em harmonia com o que está acontecendo, e a exposição de Ícaro acaba sendo uma forma de questionar certas coisas, com a tarja de censura e a arma”, esclarece Mário. Mas como seria se a exposição fosse liberada a todos, independente de idade? O criador da própria é quem sugere o processo. “O adulto olha a tela e fecha os olhos, fica barbarizado, enquanto a criança, por sua vez, ri, e se for muito pequena, a ponto de não entender, ela vê que tem uma coisa bonita ali. A violência do quadro ao lado cria a ponte entre os temas: ela é liberada, em todos os sentidos, e o sexo, não, ele é banido e sempre apresenta muita confusão. Eu diria que se o indivíduo tivesse uma educação sexual diferente, principalmente no início da infância, ele com certeza, ao crescer, teria um casamento muito mais saudável, mais promissor”.
A mostra, que apresenta obras conceituais sobre o amor e a democracia, continuará aberta à visitação até domingo próximo, dia 15. Já a pintura debatida neste texto continuará, sim, com a tarja proibitiva – pelo menos na passagem pela Casa de Cultura. Para aqueles que ainda não analisaram o supracitado quadro, fica a sugestão... E a posterior questão: a sujeira está na tela ou na mente?
Retoques finais
Na última quarta, na parte da manhã, um novo quadro foi pintado a respeito da polêmica – metaforicamente falando. Ao adicionar um novo texto à exposição, Ícaro acabou tendo uma surpresa desagradável ao saber que o mesmo havia sido retirado da Casa de Cultura. Será que a “censura” do quadro específico acabou contaminando todo o ambiente? Mário dos Anjos, que estava no local da mostra, na hora do almoço, falou sobre o acontecido. “A exposição foi colocada de uma forma. Querendo ou não, isso aqui é um local público, e tem uma administração, então, qualquer mudança na exposição tem que ser comunicada antes à administração”. O motivo principal da retirada do texto, segundo o presidente da Cultuar, foi principalmente estético. “Temos que cuidar da parte estética: eu não concordo que colem qualquer coisa na parede, principalmente com durex, pois, quando ele é tirado, sobram resíduos de cola e a parede escurece, fazendo com que a parede tenha que ser pintada novamente”.
O novo texto produzido pelo artista plástico é este – aqui reproduzido de forma fiel, desta vez, sem correções ortográficas. “A pior casta de ladrão, é a do político. Você da poder a eles, salário de marajá, e ele deixa você na merda”. Questionado sobre o conteúdo político dos escritos, Mário dos Anjos deixou sua opinião. “Eu acho qualquer um pode se manifestar, só que tem o seu local”. Não seria a Casa de Cultura o local ideal, já que a arte quase sempre apresenta ligações com a política?, perguntei a ele, que me respondeu. “Pode até ter, mas nem todas são ligadas à política. Tem que ter o seu local. Isso não foi conversado. Imagina se qualquer um que chegar aqui quiser pintar a parede, tirar as luzes? Não pode, tem que ser conversado. Por isso, temos o pessoal daqui, que toma conta da casa, da agenda e de tudo mais”.
Aparentando nervosismo e indignação, Ícaro também foi ouvido pelo Maré, e deu a sua versão sobre o fato. “Foi um ato arbitrário da Casa de Cultura, sem me consultar nem nada, só por achar que o trabalho estava feio, escrito com letras não muito convencionais”, informou ele, antes de emendar. “No meu caso, acho muito convencional e pertinente, já que trabalho há mais de 30 anos com publicidade, e sei que, uma letra feita a pincel, acaba destacando o trabalho. É a mistura entre o primitivo e o moderno, que surte efeito”.
Nas palavras do pintor, o que ele vem fazendo agora é arte contemporânea, que abriga perfeitamente outras escolas artísticas, como música, teatro e texto, de um modo que o artista não fica restrito apenas à expressão visual – no caso de Ícaro. Sobre o texto específico, ele afirma que o protesto é amplo. “O texto tem a ver com a política universal, como um todo: eu não tenho partido”.
Até domingo, muita coisa ainda pode rolar. Mais do que uma confusão artístico-administrativa, o caso descrito nestas linhas só vem a confirmar uma coisa: a cultura, independente da época e da cidade em que ela é produzida, é de vital importância para entender a sociedade em que vivemos. Mas isto eu já sabia. Espero que você também, leitor.
Por Hugo Oliveira
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