Era uma missão quase impossível: achar algum CD dos Smiths numa loja de Angra dos Reis, em 1998. Ok, coletâneas como "The Best" - 1 ou 2 - e/ou o recém-lançado "Singles" estavam à disposição, mas eu queria mais. Queria um disco de carreira, algo do tipo. E consegui... Mais ou menos.
O segundo álbum lançado pela banda, "Hatful of hollow", é um tipo de compilação de luxo. Versões diferentes e faixas gravadas em programas da BBC - John Peel e David Jensen - poderiam deixar até o mais fanático dos admiradores com a pulga atrás da orelha. Enrolação? Disquinho caça-níquel? Não mesmo. Trata-se de um trabalho perfeito. Sem falhas. Música pop de primeira, que faz dançar, pensar e querer mais. Daquele momento em diante, aquela seria a minha banda predileta. Quase 13 anos depois, continua sendo.
Comprei o CD numa loja localizada no segundo piso do Angra Shopping. O estabelecimento não existe mais; o shopping ainda vive, mas com um movimento bem pequeno. O disco? Vai bem, obrigado, rodando no leitor do meu pc, neste momento.
Eu tinha 20 anos de idade quando ouvi o álbum pela primeira vez. Era domingo, e na segunda, eu começaria a trabalhar, numa farmácia da cidade. Muitas emoções... Na vida e no CD.
Funcionava assim: ia para o trabalho - uns 10 minutos da minha casa - e, na hora do almoço, escutava o disco, durante uns 30 minutos. Aquilo mudou a minha vida. Embalou a minha "adolescência estendida", o final de um namoro, um caso rápido com uma mulher casada e um novo amor. "I was looking for a job, and then I found a job/and heavens knows I'm a miserable now". Quase isso. Nada mais seria como antes. ""I would love to go/back to the old house/but I never will".
O CD começava com "William, it was really nothing". Coisa linda. Guitarras e violões "estalando", baixo e bateria na retaguarda, pontuando tudo com simplicidade e competência. A voz de Morrissey na frente, comandando. Emocionando. Arrebatando. Vingando um zilhão de garotos e garotas entediados com suas cidades de merda. "The rain falls hard on a humdrum town/This town has dragged you down/Oh, the rain falls hard on a humdrum town/This town has dragged you down". A segunda faixa, "What difference does it make?", foi uma grata surpresa para mim. A versão original, cheia de guitarras, não me agradava muito, e de repente, aparece essa faixa, repleta de simplicidade, defendida com tesão pelos quatro integrantes da banda. Bastou o riff original para a canção fazer todo o sentido do mundo. Em seguida pinta "These things take time", desesperada, urgente, com Morrissey dizendo que "aquelas tardes alcoólicas/quando sentávamos no seu quarto/elas significavam mais para mim do que qualquer coisa viva na terra/elas tinham mais valor do que qualquer coisa viva na terra". Para quem ele estava falando aquilo? Para uma menina? Para um cara? Foda-se. Ele estava mandando uma mensagem universal, sobre não saber lidar com os seus sentimentos, inaptidão amorosa, insegurança, angústia, enfim, essas coisas que passam... Depois que você morre.
Hora de sorrir. A versão de "This charming man" inclusa no disco é tão matadora quanto delicada. A guitarra de Johnny Marr não desperdiça uma nota. Nada de punheta sonora ou solos desnecessários. Só o essencial: um riff inesquecível, atemporal. Sempre existirá alguém para gritar "aeeeeeeeeeeeee!" quando essa música for tocada. Sempre. Colada com ela vem "How soon is now?", outro carro chefe do grupo. Aqui não tem nada de engraçado, nada leve. "Eu sou humano e preciso ser amado/como todo mundo precisa". Tudo isso apresentado com um instrumental gélido, sombrio. Para nunca mais esquecer. Já "Handsome devil", uma das primeiras canções escritas pela banda, é uma bobagem. Uma bobagem deliciosa e, por vezes, constrangedora. O instrumental é macho pacas, mas a letra... Lembro da minha mãe sentada na sala, ao meu lado, enquanto eu assistia a um show da banda, transmitido pelo canal Multishow. Na hora em que essa música foi tocada, e que as letras traduzidas foram divulgadas pelo canal, dona Jacilda perguntou. "Você gosta disso?", eu respondi que sim... Mas com uma puta vergonha. Por favor, preconceito zero por aqui... Mas frases como "deixe colocar minhas mãos em suas glândulas mamárias" ou "um garoto no mato vale mais que dois na mão" são realmente de matar.
A dobradinha "Hand in glove" e "Still ill", composta de dois clássicos dos Smiths, desce redonda. Tudo bem que a primeira vem numa versão um pouquinho diferente, mais lenta do que a original, mas isso não tira um pingo da relevância da canção. A segunda, uma das únicas músicas do primeiro disco que continuaram no repertório da banda, até o fim, soa radiante, e ainda conta com a participação do guitarrista na gaita, na introdução e no final da música. Uma das frases da letra é sempre recorrente por aqui. "O corpo controla a mente ou a mente controla o corpo/eu não sei". Nem eu, Morrissey, nem eu.
"Heaven knows I'm a miserable now" é uma das minhas canções favoritas do conjunto. Tem aquela que, na minha humilde opinião, é a linha de baixo mais bonita do mundo, e uma letra sempre atual. "Na minha vida/por que eu dou um tempo valoroso/a pessoas que não se importam se eu estou vivo ou morto?". Depois dela, uma pequena pérola "lado b" do grupo, "This night has opened my eyes". Letra arrepiante, sobre uma mãe que mata o seu bebê e que não fica nem feliz e nem triste. Dê uma olhada nessa tradução que eu peguei na internet e tire suas conclusões.
Esta Noite Abriu Meus Olhos
Em um rio cor de chumbo
Mergulhe a cabeça do bebê
Embrulhe-o em um jornal
Despeje-o na soleira de uma porta, garota
Esta noite abriu meus olhos
E eu nunca mais dormirei novamente
Você pulou e chorou como uma criança tripudiada
Um homem feito de vinte e cinco anos
Oh, ele disse que curaria seus males
Mas ele não o fez e nunca o fará
Então, salve sua vida
Porque você só tem uma
O sonho se foi
Mas o bebê é real
Oh, você fez uma coisa boa
Ela poderia ser uma poetisa
Ou ela poderia ser uma tola
Oh, você fez uma coisa ruim
E eu não estou feliz
E eu não estou triste
Uma criança descalça num balanço
Te faz lembrar a sua própria criança outra vez
Ela levou embora seus problemas
Oh, mas então, de novo
Ela deixou a dor
Então, por favor, salve sua vida
Porque você só tem uma
O sonho se foi
Mas o bebê é real
Oh, você fez uma coisa boa
Ela poderia ser uma poetisa
Ou ela poderia ser uma tola
Oh, você fez uma coisa ruim
E eu não estou feliz
E eu não estou triste
Oh...
E eu não estou feliz
E eu não estou triste
"You've got everything now" e "Accept yourself" são duas músicas que também não estão entre as mais famosas da banda, mas elas continuam mantendo o nível do disco lá em cima. A segunda principalmente, com uma mensagem de caráter mais positivo, sobre aceitar a si mesmo do jeito que se é. "Girl afraid" próxima do álbum, é a coisa mais próxima de uma "surf music pós-punk". Johnny Marr, mais uma vez, apresenta um trabalho de guitarras excelente, preenchendo todos os espaços com dedilhados e acordes certeiros. O poeta Manuel Bandeira disse que "faz versos como quem morre"? Johnny compõe como quem quer marcar o seu nome na música pop, aliás, como quem sabe que vai marcar.
Segura, peão. Prepare os lenços. "Back to the old house" é uma pintura em forma de canção, um quadro com a imagem de uma pessoa caminhando, seguindo em frente, mas com o rosto voltado para trás, olhando para a antiga casa onde "começaram todos os seus sonhos" e para onde o protagonista da música adoraria voltar, mas sabe que isso nunca vai acontecer. Morrissey na voz e Marr no violão. Três minutos e dois segundos de puro deleite melancólico. Ouça com moderação.
Já estamos quase no fim do disco. A penúltima música, "Reel around the fountain", outra faixa antológica da banda, vem numa versão diferente, mais simples e com um baixo mais marcante. A beleza e o poder da canção continuam intactos, muito pela capacidade do vocalista/letrista em sintetizar coisas que todos gostariam de dizer, às vezes, em poucas frases. "Quinze minutos com você/bem, eu não diria não/as pessoas não veem valor em você/mas eu vejo". Serve tanto como uma declaração de amor irrestrito quanto um desabafo sobre o poder que certas pessoas têm sobre nós.
A última canção do CD tem menos de dois minutos. Instrumentação baseada em cordas - baixo, guitarra, violão e bandolin -, belíssima. A letra é de uma tristeza só, fazendo alusão a uma pessoa que apenas quer conseguir realizar um desejo, ao menos, pela primeira vez... E Deus sabe que, caso isso aconteça, será mesmo a primeira vez. É uma faixa para botar no "repeat", infinitamente. Aliás, como todo o disco.
"Hatful of hollow" não é o album mais importante dos Smiths. Nem o mais famoso. É o disco que eu mais ouvi na vida. E eu precisava dividir isso com vocês.
O CD está bem arranhado e o encarte está desbotado... Mas roda que é uma beleza! |
Por Hugo Oliveira
Essa é uma das bandas que mais curto. Uma das minhas cinco prediletas. Como não sou tão criterioso quanto vc, me contentei com a coletânea "Singles", que se tornou um dos álbuns mais importantes da minha vida. Durante muito tempo ele embalou alguns tempos mortos de minha adolescência de merda. Era a trilha sonora perfeita.
ResponderExcluirCurioso é que eu só fui saber que várias músicas que eu gostava eram da mesma banda em Angra, no Carnaval de 97. Algum vizinho estava ouvindo e um amigo meu disse: "isso é The Smiths". Semanas depois comprei o CD. E minha vida nunca mais foi a mesma (mentira. Continuou a mesma merda, mas agora com uma trilha perfeita).
Cara, foda! Texto irrepreensível, queria ter escrito, obrigado por fazê-lo!
ResponderExcluirAbraço
Ricardo
Sou devoto da banda desde sempre e esse foi e é um disco marcante pra mim até hoje. Uma pena ter me disfeito do vinil que trazia uma foto impagável da banda, porém tenho o cd importado e guardo como uma relíquia.
ResponderExcluirO primeiro disco deles que escutei, ganhei o lp de presente em janeiro de 1991. O tempo passa, ele continua.
ResponderExcluirEu vim ler pelo simples fato de falar de Smiths... então me surpreendi.
ResponderExcluirAlém de falar da minha banda favorita e de um dos meus álbuns favoritos, você rapaz, escreve MUITO bem. Acho que por compartilharmos dessa "emoção" chamada Hatful or Hollow eu consegui me imaginar na sua pele, aos seus 20 anos e melhor que isso, eu consegui perceber o valor que cada musiquinha tem.
Rapaz, você ganhou mais um leitor pro teu blog !
Hoje tenho 32 anos. Desde 1992, quando comprei esse disco (junto com o injustamente mal-visto Kill Uncle de Morrissey) ouço-o com uma frequência espantosa.
ResponderExcluirMarcou minha vida, sem dúvidas.
Conhecê-lo e amá-lo aos 13 anos de idade, sem dúvidas, é uma "life-changing experience"!
Parabéns pelo texto. Acho que sintetiza bem as sensações do disco. Eu o tenho em vinil e mesmo não sendo o meu disco favorito dos Smiths (Gosto mais de Meat is Murder por está nele a minha música favorita de todos os tempos: "Well I wonder"). Quando conheci a banda, em 1986, tinha 19 anos e a banda ainda existia. Eu sonhava em vê-los num show ao vivo. Quando a banda acabou em 87, fiquei com uma sensação de ter me tornado orfão. Por sorte Morrissey veio preencher perfeitamente a lacuna! Abração... e continue escrevendo... vc tem talento!
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