"There's a fear I keep so deep / Knew it name since before I could speak (...) If some night I don't come home / Please don't think I've left you alone"- Keep The Car Running, Arcade Fire
Inspirado pela última edição do Sessões Talk About The Passion, evento que visa à exibição de
documentários e filmes ligados à cultura pop, divulgo aqui uma lista pessoal
relacionada ao meu “top five” das músicas de Raul Seixas, cuja trajetória é
contada de forma competente e bela através do documentário Raul: o Início, o Fim e o Meio (2012), de Walter Carvalho.
“Eu também vou reclamar” – Canção à Bob Dylan incluída no
disco Há dez mil anos atrás (1976).
Enquanto o instrumental é baseado num Folk
Rock pra lá de animado, a letra expõe questionamentos, lamentações e
observações sobre o cotidiano de Raul, do mundo e de todos nós. “Dois problemas
se misturam / a verdade do universo / a prestação que vai vencer”. Quem nunca?
"Medo da chuva" – Uma quase balada dolorida sobre separação é
um dos pontos altos de um disco cheio de grandes canções – Gita (1974). “É pena que você pense que eu sou seu escravo /
Dizendo que eu sou seu marido e não posso partir / Como as pedras imóveis na
praia eu fico ao seu lado sem saber / Dos amores que a vida me trouxe e eu não
pude viver”. Raul Seixas dando um papo reto na esposa, dizendo que já estava em
outra.
“Let me Sing, Let me Sing” – Raul apareceu para o grande público
com esta música, carta de intenções de um compacto que ainda incluía “Teddy
Boy, Rock e Brilhantina” no lado B. Uma mistura improvável de Elvis Presley e
Luiz Gonzaga, Rock e Baião. No mesmo ano de lançamento, 1972, Raul participou
do VII Festival Internacional da Canção, defendendo a faixa. E a história se
fez.
“Gita” – Um clássico. Uma letra longa e linda, ancorada num
instrumental grandioso, que aumenta e diminui nos momentos corretos. O dedo, a
mão e todo o resto do hoje escritor de sucesso internacional, Paulo Coelho,
pode ser percebido na história contada, sobre alguém, algo, que é tudo e nada
ao mesmo tempo. “Eu sou a vela que acende / Eu sou a luz que se apaga / Eu sou
a beira do abismo / Eu sou o tudo e o nada.”
“Ouro de tolo” – Além de ser a grande canção de Raul Seixas,
é também uma das músicas mais bonitas do Brasil. Um questionamento sobre o
sentido da vida e as armadilhas que o conforto e a calmaria podem aprontar para
cima da gente. “É você olhar no espelho, se sentir um grandessíssimo idiota / Saber
que é humano, ridículo, limitado / Que só usa dez por cento de sua cabeça
animal / E você ainda acredita que é um doutor, padre ou policial / Que está
contribuindo com sua parte / Para o nosso belo quadro social”. Perfeito.
O americano David Carr, colunista
do The New York Times por 12 anos, estava
diante de um grande personagem: um jornalista viciado em drogas e álcool, pai
solteiro de filhas gêmeas que, ao tentar se livrar do vício, encontra diversas
dificuldades no meio do caminho, incluindo um câncer. Indo fundo na vida do protagonista
daquele que seria seu primeiro livro, descobre que a história era muito mais surpreendente
– e tenebrosa – do que imaginara na época.
Na época em que ele passou por
tudo isso.
Sim, leitor. David Carr é o próprio
personagem de A noite da arma (2012),
lançado no Brasil pela Editora Record. Mais do que um livro escrito através de
lembranças, que podem ser tanto aterradoras quanto imprecisas, o jornalista
recorre a dezenas de entrevistas gravadas com familiares, amigos,
ex-dependentes químicos e colegas de trabalho, além de registros médicos e
jurídicos, para contar o que se passou na sua vida desde a adolescência até sua
entrada no mais famoso jornal dos Estados Unidos.
Acompanhamos um homem talentoso
no que diz respeito às letras e às encrencas, que se vê caminhando ao fundo do
poço quando a carreira é vencida pelas carreiras, goles e tragos. O jornalista
promissor dá lugar ao traficante amador e ao drogado profissional. As
oportunidades na mídia começam a rarear; a família, apesar de unida, teme o
pior. E então, no meio de toda a destruição causada pelo vício, ele, que já
tinha outra parceira, encontra Anna. Ela é linda, loira, traficante, usuária de
cocaína e está prestes a entrar nas drogas injetáveis junto com Carr.
O relacionamento dá frutos – a
maioria, podres. Afinal, o que esperar de árvores devastadas por tempestades de
agrotóxicos e contínuo autodesmatamento? O ser humano, felizmente, é um território
fértil. E misterioso. Então, eis que surge no lixão do que resta da humanidade
uma flor tímida, pequena. Ou melhor, duas. Flores prematuras, pesando pouco
mais de um quilo, com menos de 40 centímetros cada. Tu te tornas eternamente
responsável por aquilo que cativas... Mesmo que esteja chapado demais.
A luta de Carr pela sobriedade,
por condições mínimas para criar as filhas, é emocionante e dolorida. O
jornalista descreve sua busca pela sanidade de forma corajosa e despida de atos
heroicos ou passagens cheias de lições de moral. É a história de um homem que
não tem escolha. O único caminho a seguir é o da luta, do enfrentamento dos
medos, limites e fraquezas. O que lhe resta é o futuro, e este, tem que ser
construído no agora.
A trajetória de Carr contada no
livro guarda surpresas e passagens tocantes aos leitores que se aventurarem por
suas 413 páginas. Ao final, somos presenteados com uma reflexão sobre o impacto
que as vidas das pessoas que nos rodeiam – e as responsabilidades inerentes a
elas – nos causam. As transformações que devemos executar em nós mesmos são
difíceis, mas necessárias. Mudamos para melhor, mesmo que não percebamos que
algo realmente aconteceu.
“(...) Eu agora vivo uma vida que
não mereço, mas todos nós caminhamos pela Terra sentindo que somos fraudes. O
truque é ser agradecido e esperar que essa travessura não termine logo.” –
David Carr.
Obs.: assim que terminei o livro,
fui procurar informações sobre o paradeiro atual de Carr. Descobri que ele
participou, em agosto de 2014, da Festa Literária Internacional de Paraty –
Flip, ao lado de outra grande jornalista, Graciela Mochkofsky; fiquei triste ao
saber que ele morreu em fevereiro do ano passado, por complicações ligadas a um
câncer.
Conheci o trabalho do escritor islandês Arnaldur Indridason através do
livro O segredo do lago (2013), lançado pela Companhia das
Letras. A mesma editora já havia colocado nas livrarias brasileiras dois
volumes do autor, O silêncio do túmulo (2011) e Vozes(2012), mas antes de todos eles, a Record lançou A
cidade dos vidros (2008).
Os quatro livros representam para mim o que há de melhor na atual
literatura policial. Ao menos, naquela que eu venho lendo ao longo dos anos.
Confesso que não sou um expert no assunto, mas tenho minhas predileções.
Destas, Arnaldur e seu detetive, o grande – e deveras humano – Erlendur, estão
em primeiro lugar.
Não existem exageros ligados a tiros, mortes e cenas de ação nas
aventuras de Erlendur e sua equipe, formada pelos detetives Elínborg e Sigurdur
Óli. O andamento das tramas, apesar de ágil, contempla outras nuances, e talvez
por isso o universo de Indridason seja tão especial. O passado, tanto nos
casos investigados pelo detetive quanto na própria vida de Erlendur, tem total
importância nas histórias, e é de lá que emana a força dos livros.
Erlendur tem dois filhos de um casamento fracassado, Eva Lind e Sindri.
Ele abandonou a mulher e as crianças, e estas, ao crescerem, tornaram-se
adultos problemáticos. Eva é usuária de drogas pesadas e vive se metendo em
encrencas; Sindri, um jovem que não fala muito, aparecendo de tempos em tempos
na casa do pai.
Para completar, grande parte dos dramas psicológicos de Erlendur
floresceram por conta do sumiço do irmão, durante uma forte nevasca, quando os
dois ainda eram crianças. Já crescido, o detetive continua sonhando com ele,
culpando-se por se perder do irmão durante o tempo inóspito. Nada de
sobrenatural ou fantástico: apenas fantasmas do destino, assombrando-o
constantemente. A vida normal pode ser mais assustadora e sinistra do que
qualquer caso de polícia.
Os questionamentos e as idiossincrasias de Erlendur e das pessoas que o
rodeiam são tão interessantes quanto às histórias que vão sendo contadas ao
longo dos livros. Na verdade, o enredo que se desenrola em aparente segundo
plano nos volumes é o principal motivo de as tramas protagonizadas pelo
detetive apresentarem muito mais do que crimes, investigações, reviravoltas e,
por fim, a solução do caso. Arnaldur Indridason está escrevendo uma narrativa sobre um homem que, em meio a várias tormentas, ainda tem que dar conta do dilúvio de
dor e arrependimento que invadiu sua vida pessoal.
No olho do furacão, Erlendur se segura como pode. Parece com alguém que
você conhece?
Uma
das peculiaridades de morar em cidades afastadas dos grandes centros
culturais é uma quase necessidade de aproveitar o máximo possível
as oportunidades de entretenimento quando essas se apresentam.
Morando em uma cidade cujo único cinema disponibiliza uma
programação, digamos, conservadora, não foram poucas as vezes em
que assisti a duas ou três sessões seguidas em um mesmo dia de
estadia no Rio de Janeiro – a apenas duas horas de distância, mas
distando séculos de afastamento cultural de Angra dos Reis, cidade
onde hoje resido.
Justamente
por isso, no último fim de semana, não poderia perder a
oportunidade de presenciar os concertos de dois nomes de estilo e
sonoridades tão distintas que se apresentavam em horários
compatíveis e distância relativamente curta.
O
primeiro, Cidadão Instigado, é a banda mais importante do Brasil
nos últimos anos. Se em estúdio apresentam trabalhos
extraordinários, ao vivo superam a qualidade das gravações. É
sempre uma satisfação contemplar uma banda cada vez mais afiada,
executando com precisão (sem abrir mão do feeling) os criativos
arranjos e dinâmicas de suas canções. Esse show do álbum
Fortaleza
é um espetáculo de rock n' roll com tamanho nível de qualidade que
não vejo nenhuma outra banda ou artista no Brasil hoje que sequer se
aproxime. Catatau parece cada vez mais inspirado, com uma postura
mais sólida
e
segura do que das outras vezes em que assisti
à banda.
O
show aconteceu no Oi Futuro Ipanema, teatro que me gera sentimentos
conflitantes. Se, por um lado, a acústica é ótima, com qualidade
de som acima da média das casas brasileiras, a presença de cadeiras
e a proibição do consumo de bebidas alcoólicas torna o lugar pouco
afeito a concertos de rock. Nesse especificamente, senti uma energia
represada, que seria mais bem explorada em um lugar como o Circo
Voador ou o Teatro Rival, local onde havia assistido o Cidadão
Instigado anteriormente, em 2011.
foto: Rogério von Krüger
O
segundo tempo da noite passei em atmosfera bem diferente, Fundo de
Quintal e Zeca Pagodinho, na Fundição Progresso.
Há
algumas semanas, depois de um tempo afastado do samba, em uma
promoção de CDs, peguei dois discos do Zeca Pagodinho de meados da
década de 1990, um momento interessante da obra do cantor, quando,
com o auxílio do maestro Rildo Hora, os arranjos passam a incorporar
batidas afro ao tradicional partido alto, levando a carreira de Zeca
a outro patamar.
Familiarizado
novamente, não haveria momento melhor para vê-lo ao vivo. Anos
antes, estive em dois shows: no primeiro, estava “alterado”
demais para curtir o espetáculo e, no segundo, o cantor é que
estava “sem condições” de fazer um bom show. Felizmente, dessa
vez, a conjuntura parecia favorável para ambos.
Confesso
que assisti de longe à abertura do sempre competente Fundo de
Quintal. Estava acompanhado de uma grande amiga e aproveitamos para
nos atualizar sobre os acontecimentos recentes, visto que pouco
conseguimos nos encontrar pessoalmente. Ainda assim, deu pra sentir a
vibração de clássicos como “Conselho” e “O
show tem que continuar”.
Com
relação ao Zeca Pagodinho, o que mais impressiona é a quantidade
de sucessos e a consistência da apresentação. Não há pontos
baixos, é o tipo de show em que se torna difícil escolher a hora de
buscar mais cerveja. Com o que talvez seja a grande voz de samba da
atualidade, representação do melhor da boa malandragem carioca,
Zeca entoa sambas da Velha Guarda, os inevitáveis hits e pequenos
clássicos pessoais de cada pessoa na plateia. É curioso perceber o
público interpretando, cada um a seu modo, os sambas sentimentais,
bem-humorados ou reflexivos do repertório.
Já
assumindo o risco de simplificações vazias, não há como deixar de
notar a diferença de clima e postura entre o público “de rock”
do Cidadão Instigado e a plateia do samba. Enquanto os primeiros são
mais fechados, contidos e circunspectos; no samba há maior
diversidade e um público menos atento, mas mais exultante e
participativo. No final das contas, duas excelentes apresentações
que exemplificam a riqueza e pluralidade da tão subestimada (muitas
vezes, pelos próprios brasileiros) cultura nacional.
O primeiro álbum de Jazz que ouvi
na vida foi Chet Baker Sings (1954),
do trompetista e cantor americano Chet Baker. Peguei emprestado com um grande
amigo, o mestre Daniel Guimarães, junto com outro clássico do estilo, Kind of Blue (1959), do trompetista e
compositor Miles Davis. Este último, mesmo que eu tenha adquirido o CD há algum
tempo, ainda não foi devidamente digerido; já o primeiro, entrou na lista dos
meus melhores de todos os tempos.
Uma correção: o álbum que ouvi e
que posteriormente adquiri é uma reedição do disco oficial, de 1956, com seis
músicas a mais do que o vinil original. Sinceramente, acredito que o acréscimo
de novas faixas logo no começo da obra foi essencial para que a minha relação
com o álbum fosse marcada pela paixão.
“That Old Feeling”, faixa que
abre o disco, não poderia ser uma carta de intenções mais adequada. O trompete
classudo na abertura, a bateria fluindo suave, o baixo bem marcado e o piano martelado com delicadeza servem de base à voz pequena e assustadoramente
precisa de Chet, que canta sobre um velho sentimento – de amor – que continua
queimando no coração. “There'll
be no new romance for me, it's foolish to start / Cause that old feeling is
still in my heart.”
“It’s Always You”, um pouco mais
delicada que a música de abertura, tem uma letra tão parecida com a da faixa anterior
que parece fazer parte da mesma história. A personagem que, sofrendo de amor,
vê a pessoa amada em todas as situações, como se não fosse conseguir esquecer o
que passou, assumindo-se assombrada para sempre pelo passado, pelos bons momentos
que se foram e pela constatação de que os outros são os outros. E só.
Mais duas, três canções, e a
temática das letras segue a mesma. O amor, todas as facetas desse sentimento e
a vontade de encontrar a pessoa dos sonhos. É isto: o canto de Chet é melífluo;
seu trompete, uma máquina de canções de ninar para adultos, lullaby para maiores. Um artista oriundo
de uma época onde amar e ser amado, sofrer por amor ou pela ausência dele,
demonstrar sentimentos, não era considerado fraqueza. Era humano, demasiadamente humano.
Hoje somos fortes, irônicos e
estamos sempre prontos para a próxima. Tudo muito rápido, seguindo o espírito
destes tempos. “Like Someone In Love”, a respeito de alguém embriagado de amor,
“My Ideal”, sobre a possibilidade de encontrar a alma gêmea na próxima esquina,
“I’ve Never Been in Love Before”, o momento exato em que a pessoa se descobre
perdidamente apaixonado, são todas canções de outros tempos, quando a vida e o
amor eram discutidos a fundo – e ao vivo – por amigos através de uma rede social conhecida como amizade. Amigos nos dias
alegres, quando algo dava errado, enfim, amigos para sempre. Olho para trás e sinto saudade da
inocência e da beleza daqueles dias. Amigos e amores que hoje, pela correria da
vida, vivem nos sorrisos despreocupados das fotos antigas e em canções saudosistas tocadas no rádio, em horário alternativo. Assim como o
personagem da canção “My Buddy”, sinto falta de tudo isso.
O lado B do disco, que na verdade
corresponde à obra original, segue pela mesma linha de brilhantismo e suavidade
musical, com momentos agridoces essenciais ao tempero que dá o gosto tão
especial de “Chet Baker Sings”. Se em “But Not For Me”, de George e Ira
Gershwin, Chet se sente azarado no amor, em “Time After Time”, outro potente
standard do Jazz – de Sammy Cahn e Jule Styne –, ele vibra com sorte de estar
amando a mesma mulher, dia após dia. Hoje, a caça; amanhã, o caçador. E os ouvintes saem ganhando sempre.
“I Get Along
Without You Very Well” e “My Funny Valentine” mereciam textos específicos. A
primeira oferece uma letra emocionante e simples, simples até não poder mais. “I get along without you very well /
Of course I do / Except when soft rains fall / And drip from leaves then I
recall / The thrill of being sheltered in your arms / Of course I do / But I
get along without you very well”; a segunda, clássico inconteste de Richard
Rodgers e Lorenz Hart, mostra como trabalham os gênios da música, fazendo algo
sofisticado, em letra e música, soar fácil aos ouvidos de qualquer um. Como
intérprete, Chet e os músicos que participaram da gravação acrescentam ainda
mais beleza e força à faixa. Aqui,
sempre pode melhorar.
“There Will Never Be Another You”, The Thrill
Is Gone”, “I Fall In Love To Easily”… Falar mais o que sobre essas
canções? Acho que a minha capacidade de expressar a beleza deste disco através de
palavras acabou lá pelo sexto parágrafo. O resto é história. Aperte o play e
sinta.
Então, deixe-me finalizar. O álbum termina com “Look For The
Silver Lining”, algo como “olhe pelo lado positivo” em tradução para o
português. Depois de chorar, sorrir e se emocionar com o amor e sua miríade de
sentimentos, Chet oferece um conselho a todos nós – ele incluso. Eu e você
sabemos que é um baita de um clichê, mas não poderia ser mais verdadeiro em épocas
como esta. Segue abaixo, em separado,
como se fosse um versinho de uma criança. Afinal, não é isso que deveríamos sempre
ser?
Dois documentários musicais
indicados ao Oscar deste ano, Amy
(2015), de Asif Kapadia, e What happened,
Miss Simone? (2015), de Liz Garbus, estão disponíveis aos assinantes do
Netflix. Sei que a notícia não é nova, mas acredito que existem vários “retardatários
virtuais” prontos para aproveitar a dica. Como eu, por exemplo.
A primeira obra citada apresenta,
através de vídeos caseiros e depoimentos de amigos, produtores, empresários e
músicos, a trajetória meteórica da cantora inglesa Amy Winehouse, um furacão neo-soul que lançou dois discos oficiais
– um deles, o irrepreensível Back to
Black (2006) –, influenciou uma nova geração de artistas e, desorientado
por conta do sucesso repentino e de um relacionamento turbulento regado a
drogas e álcool, partiu para outro plano aos 27 anos de idade.
O talento de Amy, sua capacidade
em criar letras e canções inesquecíveis, utilizando velhas formas em novíssimas
embalagens, fica bem claro ao longo do documentário. Da mesma forma, a ideia de
que a bola de neve emocional relacionada à vida particular da cantora não
parava de crescer, transformando-se em pouco tempo numa avalanche de dor e
desorientação, confirma-se de maneira plena. Já vimos essa história.
Provavelmente, continuaremos vendo.
Talvez, o mais triste de tudo
seja a constatação de que a deterioração emocional, física e profissional da
artista é acompanhada com prazer e obsessão principalmente pela mídia. Se após
a morte da cantora não faltam elogios e pesares, antes, o que valia era a lógica
do “quanto pior, melhor”. Construir um novo caminho em meio a todas as
dificuldades? Fora de cogitação. Queremos destruição... E agora.
Isso não vale apenas para o caso
específico. Do cruzamento entre as estradas do radicalismo e as das soluções
fáceis para problemas de extrema complexidade, criou-se um semáforo de merda,
sangue – nos olhos – e ignorância, cuja força motriz é alimentada por redes
sociais, ódio, gratuito ou não, e total ausência de amor ao próximo – ou a si
próprio. Direita, esquerda, centro, extremos... Seja qual for a direção ou o
direcionamento, o sinal está sempre verde. Aceleremos rumo à falta de bom
senso.
Para frente e avante! Direto ao
precipício.
O segundo documentário, What happened, Miss Simone?, também apresenta
com maestria o talento e o processo de autodestruição de sua protagonista, a
cantora, compositora e instrumentista americana Nina Simone. Acompanhamos a
menininha que, apadrinhada por uma professora de música, cresce com o intuito
de se tornar a primeira negra a apresentar um concerto clássico de piano.
Nina é recusada num famoso
instituto de aprendizagem musical justamente pelo motivo que a tinha levado ao
estudo do piano. Afinal, uma negra não poderia, de forma alguma, ter sua imagem
ligada à música clássica. Se o mundo perdeu um nome de peso relacionado à
erudição musical, por outro lado, ganhou uma artista popular genial. Algum
tempo depois da negativa, sobrevivendo através de apresentações em bares e
pequenas casas de show, Nina vai se transformando na nova estrela do Jazz e do
Blues, numa carreira cujos holofotes da fama pareciam iluminar de maneira
incessável.
Mas o que parecia ser um final
feliz se transforma no começo do fim. A entrada de um marido violento e
controlador na vida de Nina e a morte de personalidades ligadas ao movimento
pelos direitos civis da época, aliadas à crescente sensação de que ela poderia
– e deveria – peitar o establishment reinante,
jogou-a num espiral de confusão emocional e luta desenfreada contra o racismo,
incluindo-se aí a incitação às armas e ao combate propriamente dito. Tragédia à
vista.
Não apenas nas décadas de 60 e 70
a ideia de combater fogo com fogo era compreendida como justa e fundamental por
muitos militantes de variadas causas. Gays contra homofóbicos, oposicionistas contra
regimes ditatoriais, negros injustiçados contra brancos preconceituosos... A
lista é enorme e as causas das minorias, a meu ver, são importantíssimas. Porém,
a tentação de se utilizar o mesmo comportamento para enfrentar o lado A ou B
pode nos transformar exatamente naquilo que mais repudiamos, principalmente se
adicionarmos ao explosivo coquetel de revanchismo uma boa dose de problema
psicológicos, como aconteceu com Nina. De repente, o que era coragem e redenção
se transforma em ignorância e loucura. Parece o fim.
A cantora ainda tenta, com a
ajuda de vários amigos, retornar à normalidade. Começa a se tratar de um
transtorno mental diagnosticado e, de volta aos palcos timidamente, passa a
apresentar um repertório menos combativo, assim como sua retórica. Pouco a
pouco, os fantasmas e traumas que a assolaram durante um bom período de sua
vida arrefecem, e o documentário nos mostra que ela dá seguimento à caminhada e
encontra bons momentos pela frente, até se despedir desta existência, em abril
de 2003.
Em diferentes épocas, Amy e Nina
enfrentaram os grandes desafios de seus tempos. Mais do que isso: enfrentaram um mal maior
que, dia após dia, segue incólume, angariando pessoas de todos os lugares,
credos e classes. A convocação está aí, no Facebook, nos jornais, nas ruas, na
televisão, em tudo. Não podemos escapar desse ódio, dessa ignorância, mas há
quem diga que uma boa maneira de encarar esse desafio é utilizar o amor, o
entendimento e o discernimento como resposta.
Vai ver que a canção da verdadeira
revolução é entoada em aparente silêncio.
Não sei bem como começar
essa correspondência, amiga, o que não deixa de ser desapontante e
um bocadinho irônico, visto que, quando por perto, comunicávamo-nos
muitas vezes sem precisar das palavras.
A vida tão curta, nós
tão pequenos, que há uma ponta de vergonha de minha parte pela
falta de esforço em estreitar os laços, sabendo que o tempo e a
distância duramente tendem a distender o caráter diuturno de nossa
harmoniosa identificação. Recentemente estive perto de sua casa e
por orgulho e leve ressentimento besta não a procurei, ainda que sua
proximidade fosse quase palpável, “presente na saudade”, como
disse certa vez nosso querido Vinicius.
Não há e nunca haverá
outro Vinicius, e como uma figura como ele faz falta nesses dias
malucos que vivemos. Queria sentar com você num bar em Ipanema, Angra dos
Reis ou na Ilha do Governador e passar horas lânguidas a
compartilhar nossa misantropia, pequenas alegrias e infelicidades
reais e imaginadas enquanto o mundo movimenta-se veloz ao nosso redor
com estrépito e fervor indiferente à nossa dolente melancolia.
Como sinto falta de
quando podíamos ter esse espaço em nossa rotina, toda semana,
muitas vezes em dias consecutivos. O tempo, conforme já alertava
Aldir, gira em volta de mim a judiar, passa sombrio e eu, realmente,
não sei. O problema por aqui é não conseguir passar do meio da
canção, fica a zombaria sem resposta.
Não sei quanto a você,
há em mim uma dificuldade imensa em aceitar no que me transformei. O
espelho bate forte, uma ilustração medonha, com a qual inicio uma
luta, espero que não tardia, para amenizar as avarias, embora meu
pessimismo me faça temer transformar em um incompreensível grande
borrado, fruto de uma borracha já desgastada pelo uso e desleixo.
O que falaríamos nós,
depois desses anos, de como o mundo se encontra? Política nunca foi
tema assim tão presente em nossas conversas, mas inevitável que
comentássemos a patética caricatura que a “direita” vem se
tornando, se há perigo em seus, por enquanto, risíveis extremos. E
no quanto a “esquerda” transformou-se no que mais temia, o que é
ainda mais triste, pois o que um dia foi um fio de esperança
converteu-se num rio asqueroso de podridão.
Gostaria de compartilhar
e saber o que pensa sobre os exageros para expressar qualquer tipo de
opinião; discutir o humor atual cada vez mais “limpinho” e
babaca; o politicamente correto tomando as rédeas de qualquer
discussão e tornando o mundo mais e mais sem graça; e saber de
você, amiga, o que anda fazendo, pensando, sentindo, planejando,
vivendo.
É carnaval e me sinto
tão distante da euforia a que as pessoas se obrigam, pulando,
cantando e sorrindo para fugir do desespero mal disfarçado de suas
vidas cotidianas. Continuo recorrendo a novos e velhos discos, livros
e filmes com o mesmo objetivo e, em outra ocasião, adoraria
compartilhar com você quais deles mais vêm me despertando vida e
admiração.
Por aqui sigo procurando,
além das obras de arte, alguém com uma visão mais positiva ou
mesmo que possua a mesma melancolia, mas que seja capaz de me
resgatar das armadilhas as quais eu mesmo me impus. A verdade é que
queria me sentir como homem como me sinto em minha vida profissional.
(e, lembrando da época de faculdade, quem diria que um dia fosse
proferir algo assim?)
Lá fora o sol brilha
forte e a atmosfera dessa carta talvez passe uma impressão
contrária, de tristeza e escuridão. Mas saiba que é fruto da
saudade desse momento e, sim, de um ou outro incômodo recorrente.
Continuo rindo e me divertindo com as mesmas bobagens de sempre, como fazíamos em nossos encontros
mesmo em meio a nossas épocas mais turbulentas.
A ideia de escrever essa
carta veio depois de escutar esse episódio do Pingue Pongue,
programa de rádio em que Matilde e Tomás, em meio a incríveis
canções, conversam sobre a arte e a vida, com a
inspiração e intimidade com que outrora costumávamos fazer e que,
espero, ainda possamos em algum momento. Ouça com carinho, acho que
pode gostar.
Um dos grupos britânicos mais interessantes da década de 90,
o Suede, que desde o retorno aos palcos, em 2010, vem fazendo ótimos shows por
todo o planeta, também mostra que gravar discos inesquecíveis continua sendo um
dos objetivos do conjunto.
Os dois primeiros trabalhos do grupo – ainda com o brilhante
guitarrista Bernard Butler –, Suede
(1993) e Dog Man Star (1994), são
duas peças importantes em qualquer discoteca básica de rock moderno que se
preze. O álbum seguinte, Coming Up
(1996), já com novos integrantes, não apenas manteve o nível de qualidade, como
também alcançou um sucesso comercial inédito aos parâmetros da banda,
tornando-a mais conhecida fora da Inglaterra. Daí em diante, ladeira abaixo...
Mas sempre com elegância e bom gosto.
Seguiram-se discos menos inspirados, como Head Music (1999) e A New Morning (2002), o que desembocou na decisão do grupo em
encerrar as atividades em 2003, após o lançamento da ótima coletânea Singles. Era o fim da banda que soube
misturar David Bowie e The Smiths com maestria e originalidade, empacotando o
resultado numa embalagem chamativa para garotos e garotas que davam boas-vindas
ao segundo milênio, mas baseavam a trilha sonora da época em Glam Rock, Post-Punk e uma pitada do hedonismo herdado das raves e da
decadência fin-de-siècle.
Sete anos depois, o grupo retorna com uma série de
apresentações elogiadíssimas pela imprensa, incluindo aí uma passagem pelo
Brasil, no Planeta Terra Festival, em 2012. O primeiro disco pós-retorno, Bloodsports, é lançado em 2013. Se não consegue
chegar ao nível dos primeiros álbuns, o trabalho mostra um conjunto criativo e
fiel a suas raízes, defendendo uma coleção de boas canções com o tesão e o amor
de outrora.
Eis que chegamos a Night
Thoughts, lançado em janeiro deste ano. Confesso que ficaria até feliz em
repetir as palavras elogiosas, porém contidas, utilizadas ao citar o disco
anterior, mas não é o caso. O mais recente álbum do Suede é um trabalho
poderoso e dramático, belo e sombrio. Como se a banda recuperasse o espírito da
primeira metade dos 90 e o transportasse à atualidade, sem arestas a podar ou
concessões a fazer. Um disco para não perder a fé no rock, mesmo que a vida te
puxe para outras direções, prazeres e prioridades.
O começo climático com “When You Are Young” parece mesmo com
a música de abertura de algum filme. A voz de Brett Anderson, vocalista do
conjunto, aparece lá pelo meio da faixa, e emociona. Variando entre passagens
fortes e falsetes estilosos, Brett segue pontuando os trechos da curta canção
com intensidades diferentes, mostrando que um bom cantor faz a diferença.
A dobradinha que vem em seguida, formada por “Outsiders” e
“No Tomorrow”, é de chorar. A primeira, de instrumental mais sombrio, versa
aparentemente sobre um casal que, apesar da desolação relacionada à vida, segue
acreditando naquilo que se tem no momento – neste caso, o amor; a segunda, com
uma solar introdução de guitarra, é um convite ao enfrentamento das
dificuldades e tristezas, entendendo-se que não existe amanhã, e a vida é
agora.
“I Don’t Know How To Reach You” mostra a pegada mais
psicodélica do Suede, com um bonito refrão e uma letra sobre os problemas de
relacionamento com uma mesma pessoa, mas em diferentes fases. Já “What I’m
Trying To Tell You”, que vem em seguida, é o ponto alto do álbum. Por meio de
uma base dançante, Brett e os companheiros de banda vão saracoteando como um
bloco de carnaval britânico, cujo mestre-sala é Morrissey, e a porta-bandeira,
David Bowie. Uma homenagem às grandes influências do conjunto e ao próprio
caminho trilhado pelo grupo. Uma letra apaixonada sobre alguém que não sabe
como demonstrar o seu amor... Por conta de tanto amor.
O disco continua com duas baladas dramáticas, “Tightrope” e
“Learning To Be”. Talvez, por conta de aparecerem em sequência, elas fazem com
que o álbum perca embalo e urgência. De qualquer forma, quem surge em seguida é
“Like Kids”, um rock que coloca o álbum de volta aos trilhos. A próxima canção,
“I Can’t Give Her What She Wants”, também é uma faixa lenta, mas consegue se
destacar tanto pela forte letra sobre suicídio quanto pelo instrumental
pungente.
Night Thoughts
termina fazendo alusão ao início do álbum. Se a obra começa com “When You Are
Young” – quando você é jovem –, ao final, temos “When You Were Young” – quando
você era jovem –, que vem emendada com “The Fur & The Feathers”. A parte final do disco junta as peças do
quebra-cabeça: estamos diante de um trabalho conceitual, com canções que
dialogam entre si a respeito dos relacionamentos, do tempo, da vida e da morte.
Com seu mais novo disco, o Suede mostra que, apesar da
passagem dos anos, continua buscando novas e boas canções, entendendo que ainda
tem fogo a queimar e conquistas a efetuar. Se a banda voltou por grana,
aproveitando o bonde do revival? É
bem provável. Mesmo assim, o grupo segue excitado com as possibilidades e com,
como canta Brett na última faixa do álbum, “a emoção da perseguição”.