Não sei bem como começar
essa correspondência, amiga, o que não deixa de ser desapontante e
um bocadinho irônico, visto que, quando por perto, comunicávamo-nos
muitas vezes sem precisar das palavras.
A vida tão curta, nós
tão pequenos, que há uma ponta de vergonha de minha parte pela
falta de esforço em estreitar os laços, sabendo que o tempo e a
distância duramente tendem a distender o caráter diuturno de nossa
harmoniosa identificação. Recentemente estive perto de sua casa e
por orgulho e leve ressentimento besta não a procurei, ainda que sua
proximidade fosse quase palpável, “presente na saudade”, como
disse certa vez nosso querido Vinicius.
Não há e nunca haverá
outro Vinicius, e como uma figura como ele faz falta nesses dias
malucos que vivemos. Queria sentar com você num bar em Ipanema, Angra dos
Reis ou na Ilha do Governador e passar horas lânguidas a
compartilhar nossa misantropia, pequenas alegrias e infelicidades
reais e imaginadas enquanto o mundo movimenta-se veloz ao nosso redor
com estrépito e fervor indiferente à nossa dolente melancolia.
Como sinto falta de
quando podíamos ter esse espaço em nossa rotina, toda semana,
muitas vezes em dias consecutivos. O tempo, conforme já alertava
Aldir, gira em volta de mim a judiar, passa sombrio e eu, realmente,
não sei. O problema por aqui é não conseguir passar do meio da
canção, fica a zombaria sem resposta.
Não sei quanto a você,
há em mim uma dificuldade imensa em aceitar no que me transformei. O
espelho bate forte, uma ilustração medonha, com a qual inicio uma
luta, espero que não tardia, para amenizar as avarias, embora meu
pessimismo me faça temer transformar em um incompreensível grande
borrado, fruto de uma borracha já desgastada pelo uso e desleixo.
O que falaríamos nós,
depois desses anos, de como o mundo se encontra? Política nunca foi
tema assim tão presente em nossas conversas, mas inevitável que
comentássemos a patética caricatura que a “direita” vem se
tornando, se há perigo em seus, por enquanto, risíveis extremos. E
no quanto a “esquerda” transformou-se no que mais temia, o que é
ainda mais triste, pois o que um dia foi um fio de esperança
converteu-se num rio asqueroso de podridão.
Gostaria de compartilhar
e saber o que pensa sobre os exageros para expressar qualquer tipo de
opinião; discutir o humor atual cada vez mais “limpinho” e
babaca; o politicamente correto tomando as rédeas de qualquer
discussão e tornando o mundo mais e mais sem graça; e saber de
você, amiga, o que anda fazendo, pensando, sentindo, planejando,
vivendo.
É carnaval e me sinto
tão distante da euforia a que as pessoas se obrigam, pulando,
cantando e sorrindo para fugir do desespero mal disfarçado de suas
vidas cotidianas. Continuo recorrendo a novos e velhos discos, livros
e filmes com o mesmo objetivo e, em outra ocasião, adoraria
compartilhar com você quais deles mais vêm me despertando vida e
admiração.
Por aqui sigo procurando,
além das obras de arte, alguém com uma visão mais positiva ou
mesmo que possua a mesma melancolia, mas que seja capaz de me
resgatar das armadilhas as quais eu mesmo me impus. A verdade é que
queria me sentir como homem como me sinto em minha vida profissional.
(e, lembrando da época de faculdade, quem diria que um dia fosse
proferir algo assim?)
Lá fora o sol brilha
forte e a atmosfera dessa carta talvez passe uma impressão
contrária, de tristeza e escuridão. Mas saiba que é fruto da
saudade desse momento e, sim, de um ou outro incômodo recorrente.
Continuo rindo e me divertindo com as mesmas bobagens de sempre, como fazíamos em nossos encontros
mesmo em meio a nossas épocas mais turbulentas.
A ideia de escrever essa
carta veio depois de escutar esse episódio do Pingue Pongue,
programa de rádio em que Matilde e Tomás, em meio a incríveis
canções, conversam sobre a arte e a vida, com a
inspiração e intimidade com que outrora costumávamos fazer e que,
espero, ainda possamos em algum momento. Ouça com carinho, acho que
pode gostar.
Uma saideira,
muita saudade.
Ricardo Pereira
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