"There's a fear I keep so deep / Knew it name since before I could speak (...) If some night I don't come home / Please don't think I've left you alone"- Keep The Car Running, Arcade Fire

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Beleza na distância

Uma das peculiaridades de morar em cidades afastadas dos grandes centros culturais é uma quase necessidade de aproveitar o máximo possível as oportunidades de entretenimento quando essas se apresentam. Morando em uma cidade cujo único cinema disponibiliza uma programação, digamos, conservadora, não foram poucas as vezes em que assisti a duas ou três sessões seguidas em um mesmo dia de estadia no Rio de Janeiro – a apenas duas horas de distância, mas distando séculos de afastamento cultural de Angra dos Reis, cidade onde hoje resido.

Justamente por isso, no último fim de semana, não poderia perder a oportunidade de presenciar os concertos de dois nomes de estilo e sonoridades tão distintas que se apresentavam em horários compatíveis e distância relativamente curta.

O primeiro, Cidadão Instigado, é a banda mais importante do Brasil nos últimos anos. Se em estúdio apresentam trabalhos extraordinários, ao vivo superam a qualidade das gravações. É sempre uma satisfação contemplar uma banda cada vez mais afiada, executando com precisão (sem abrir mão do feeling) os criativos arranjos e dinâmicas de suas canções. Esse show do álbum Fortaleza é um espetáculo de rock n' roll com tamanho nível de qualidade que não vejo nenhuma outra banda ou artista no Brasil hoje que sequer se aproxime. Catatau parece cada vez mais inspirado, com uma postura mais sólida e segura do que das outras vezes em que assisti à banda.

O show aconteceu no Oi Futuro Ipanema, teatro que me gera sentimentos conflitantes. Se, por um lado, a acústica é ótima, com qualidade de som acima da média das casas brasileiras, a presença de cadeiras e a proibição do consumo de bebidas alcoólicas torna o lugar pouco afeito a concertos de rock. Nesse especificamente, senti uma energia represada, que seria mais bem explorada em um lugar como o Circo Voador ou o Teatro Rival, local onde havia assistido o Cidadão Instigado anteriormente, em 2011.

foto: Rogério von Krüger
O segundo tempo da noite passei em atmosfera bem diferente, Fundo de Quintal e Zeca Pagodinho, na Fundição Progresso.

Há algumas semanas, depois de um tempo afastado do samba, em uma promoção de CDs, peguei dois discos do Zeca Pagodinho de meados da década de 1990, um momento interessante da obra do cantor, quando, com o auxílio do maestro Rildo Hora, os arranjos passam a incorporar batidas afro ao tradicional partido alto, levando a carreira de Zeca a outro patamar.

Familiarizado novamente, não haveria momento melhor para vê-lo ao vivo. Anos antes, estive em dois shows: no primeiro, estava “alterado” demais para curtir o espetáculo e, no segundo, o cantor é que estava “sem condições” de fazer um bom show. Felizmente, dessa vez, a conjuntura parecia favorável para ambos.

Confesso que assisti de longe à abertura do sempre competente Fundo de Quintal. Estava acompanhado de uma grande amiga e aproveitamos para nos atualizar sobre os acontecimentos recentes, visto que pouco conseguimos nos encontrar pessoalmente. Ainda assim, deu pra sentir a vibração de clássicos como “Conselho” e “O show tem que continuar”.

Com relação ao Zeca Pagodinho, o que mais impressiona é a quantidade de sucessos e a consistência da apresentação. Não há pontos baixos, é o tipo de show em que se torna difícil escolher a hora de buscar mais cerveja. Com o que talvez seja a grande voz de samba da atualidade, representação do melhor da boa malandragem carioca, Zeca entoa sambas da Velha Guarda, os inevitáveis hits e pequenos clássicos pessoais de cada pessoa na plateia. É curioso perceber o público interpretando, cada um a seu modo, os sambas sentimentais, bem-humorados ou reflexivos do repertório.

Já assumindo o risco de simplificações vazias, não há como deixar de notar a diferença de clima e postura entre o público “de rock” do Cidadão Instigado e a plateia do samba. Enquanto os primeiros são mais fechados, contidos e circunspectos; no samba há maior diversidade e um público menos atento, mas mais exultante e participativo. No final das contas, duas excelentes apresentações que exemplificam a riqueza e pluralidade da tão subestimada (muitas vezes, pelos próprios brasileiros) cultura nacional.


Por Ricardo Pereira

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