O americano David Carr, colunista
do The New York Times por 12 anos, estava
diante de um grande personagem: um jornalista viciado em drogas e álcool, pai
solteiro de filhas gêmeas que, ao tentar se livrar do vício, encontra diversas
dificuldades no meio do caminho, incluindo um câncer. Indo fundo na vida do protagonista
daquele que seria seu primeiro livro, descobre que a história era muito mais surpreendente
– e tenebrosa – do que imaginara na época.
Na época em que ele passou por
tudo isso.
Sim, leitor. David Carr é o próprio
personagem de A noite da arma (2012),
lançado no Brasil pela Editora Record. Mais do que um livro escrito através de
lembranças, que podem ser tanto aterradoras quanto imprecisas, o jornalista
recorre a dezenas de entrevistas gravadas com familiares, amigos,
ex-dependentes químicos e colegas de trabalho, além de registros médicos e
jurídicos, para contar o que se passou na sua vida desde a adolescência até sua
entrada no mais famoso jornal dos Estados Unidos.
Acompanhamos um homem talentoso
no que diz respeito às letras e às encrencas, que se vê caminhando ao fundo do
poço quando a carreira é vencida pelas carreiras, goles e tragos. O jornalista
promissor dá lugar ao traficante amador e ao drogado profissional. As
oportunidades na mídia começam a rarear; a família, apesar de unida, teme o
pior. E então, no meio de toda a destruição causada pelo vício, ele, que já
tinha outra parceira, encontra Anna. Ela é linda, loira, traficante, usuária de
cocaína e está prestes a entrar nas drogas injetáveis junto com Carr.
O relacionamento dá frutos – a
maioria, podres. Afinal, o que esperar de árvores devastadas por tempestades de
agrotóxicos e contínuo autodesmatamento? O ser humano, felizmente, é um território
fértil. E misterioso. Então, eis que surge no lixão do que resta da humanidade
uma flor tímida, pequena. Ou melhor, duas. Flores prematuras, pesando pouco
mais de um quilo, com menos de 40 centímetros cada. Tu te tornas eternamente
responsável por aquilo que cativas... Mesmo que esteja chapado demais.
A luta de Carr pela sobriedade,
por condições mínimas para criar as filhas, é emocionante e dolorida. O
jornalista descreve sua busca pela sanidade de forma corajosa e despida de atos
heroicos ou passagens cheias de lições de moral. É a história de um homem que
não tem escolha. O único caminho a seguir é o da luta, do enfrentamento dos
medos, limites e fraquezas. O que lhe resta é o futuro, e este, tem que ser
construído no agora.
A trajetória de Carr contada no
livro guarda surpresas e passagens tocantes aos leitores que se aventurarem por
suas 413 páginas. Ao final, somos presenteados com uma reflexão sobre o impacto
que as vidas das pessoas que nos rodeiam – e as responsabilidades inerentes a
elas – nos causam. As transformações que devemos executar em nós mesmos são
difíceis, mas necessárias. Mudamos para melhor, mesmo que não percebamos que
algo realmente aconteceu.
“(...) Eu agora vivo uma vida que
não mereço, mas todos nós caminhamos pela Terra sentindo que somos fraudes. O
truque é ser agradecido e esperar que essa travessura não termine logo.” –
David Carr.
Obs.: assim que terminei o livro,
fui procurar informações sobre o paradeiro atual de Carr. Descobri que ele
participou, em agosto de 2014, da Festa Literária Internacional de Paraty –
Flip, ao lado de outra grande jornalista, Graciela Mochkofsky; fiquei triste ao
saber que ele morreu em fevereiro do ano passado, por complicações ligadas a um
câncer.
Por Hugo Oliveira
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