"There's a fear I keep so deep / Knew it name since before I could speak (...) If some night I don't come home / Please don't think I've left you alone"- Keep The Car Running, Arcade Fire

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Jornalismo como redenção

O americano David Carr, colunista do The New York Times por 12 anos, estava diante de um grande personagem: um jornalista viciado em drogas e álcool, pai solteiro de filhas gêmeas que, ao tentar se livrar do vício, encontra diversas dificuldades no meio do caminho, incluindo um câncer. Indo fundo na vida do protagonista daquele que seria seu primeiro livro, descobre que a história era muito mais surpreendente – e tenebrosa – do que imaginara na época.

Na época em que ele passou por tudo isso.

Sim, leitor. David Carr é o próprio personagem de A noite da arma (2012), lançado no Brasil pela Editora Record. Mais do que um livro escrito através de lembranças, que podem ser tanto aterradoras quanto imprecisas, o jornalista recorre a dezenas de entrevistas gravadas com familiares, amigos, ex-dependentes químicos e colegas de trabalho, além de registros médicos e jurídicos, para contar o que se passou na sua vida desde a adolescência até sua entrada no mais famoso jornal dos Estados Unidos.

Acompanhamos um homem talentoso no que diz respeito às letras e às encrencas, que se vê caminhando ao fundo do poço quando a carreira é vencida pelas carreiras, goles e tragos. O jornalista promissor dá lugar ao traficante amador e ao drogado profissional. As oportunidades na mídia começam a rarear; a família, apesar de unida, teme o pior. E então, no meio de toda a destruição causada pelo vício, ele, que já tinha outra parceira, encontra Anna. Ela é linda, loira, traficante, usuária de cocaína e está prestes a entrar nas drogas injetáveis junto com Carr.

O relacionamento dá frutos – a maioria, podres. Afinal, o que esperar de árvores devastadas por tempestades de agrotóxicos e contínuo autodesmatamento? O ser humano, felizmente, é um território fértil. E misterioso. Então, eis que surge no lixão do que resta da humanidade uma flor tímida, pequena. Ou melhor, duas. Flores prematuras, pesando pouco mais de um quilo, com menos de 40 centímetros cada. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas... Mesmo que esteja chapado demais.

A luta de Carr pela sobriedade, por condições mínimas para criar as filhas, é emocionante e dolorida. O jornalista descreve sua busca pela sanidade de forma corajosa e despida de atos heroicos ou passagens cheias de lições de moral. É a história de um homem que não tem escolha. O único caminho a seguir é o da luta, do enfrentamento dos medos, limites e fraquezas. O que lhe resta é o futuro, e este, tem que ser construído no agora.

A trajetória de Carr contada no livro guarda surpresas e passagens tocantes aos leitores que se aventurarem por suas 413 páginas. Ao final, somos presenteados com uma reflexão sobre o impacto que as vidas das pessoas que nos rodeiam – e as responsabilidades inerentes a elas – nos causam. As transformações que devemos executar em nós mesmos são difíceis, mas necessárias. Mudamos para melhor, mesmo que não percebamos que algo realmente aconteceu.

“(...) Eu agora vivo uma vida que não mereço, mas todos nós caminhamos pela Terra sentindo que somos fraudes. O truque é ser agradecido e esperar que essa travessura não termine logo.” – David Carr.



Obs.: assim que terminei o livro, fui procurar informações sobre o paradeiro atual de Carr. Descobri que ele participou, em agosto de 2014, da Festa Literária Internacional de Paraty – Flip, ao lado de outra grande jornalista, Graciela Mochkofsky; fiquei triste ao saber que ele morreu em fevereiro do ano passado, por complicações ligadas a um câncer.


Por Hugo Oliveira




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