Dois documentários musicais
indicados ao Oscar deste ano, Amy
(2015), de Asif Kapadia, e What happened,
Miss Simone? (2015), de Liz Garbus, estão disponíveis aos assinantes do
Netflix. Sei que a notícia não é nova, mas acredito que existem vários “retardatários
virtuais” prontos para aproveitar a dica. Como eu, por exemplo.
A primeira obra citada apresenta,
através de vídeos caseiros e depoimentos de amigos, produtores, empresários e
músicos, a trajetória meteórica da cantora inglesa Amy Winehouse, um furacão neo-soul que lançou dois discos oficiais
– um deles, o irrepreensível Back to
Black (2006) –, influenciou uma nova geração de artistas e, desorientado
por conta do sucesso repentino e de um relacionamento turbulento regado a
drogas e álcool, partiu para outro plano aos 27 anos de idade.
O talento de Amy, sua capacidade
em criar letras e canções inesquecíveis, utilizando velhas formas em novíssimas
embalagens, fica bem claro ao longo do documentário. Da mesma forma, a ideia de
que a bola de neve emocional relacionada à vida particular da cantora não
parava de crescer, transformando-se em pouco tempo numa avalanche de dor e
desorientação, confirma-se de maneira plena. Já vimos essa história.
Provavelmente, continuaremos vendo.
Talvez, o mais triste de tudo
seja a constatação de que a deterioração emocional, física e profissional da
artista é acompanhada com prazer e obsessão principalmente pela mídia. Se após
a morte da cantora não faltam elogios e pesares, antes, o que valia era a lógica
do “quanto pior, melhor”. Construir um novo caminho em meio a todas as
dificuldades? Fora de cogitação. Queremos destruição... E agora.
Isso não vale apenas para o caso
específico. Do cruzamento entre as estradas do radicalismo e as das soluções
fáceis para problemas de extrema complexidade, criou-se um semáforo de merda,
sangue – nos olhos – e ignorância, cuja força motriz é alimentada por redes
sociais, ódio, gratuito ou não, e total ausência de amor ao próximo – ou a si
próprio. Direita, esquerda, centro, extremos... Seja qual for a direção ou o
direcionamento, o sinal está sempre verde. Aceleremos rumo à falta de bom
senso.
Para frente e avante! Direto ao precipício.
O segundo documentário, What happened, Miss Simone?, também apresenta
com maestria o talento e o processo de autodestruição de sua protagonista, a
cantora, compositora e instrumentista americana Nina Simone. Acompanhamos a
menininha que, apadrinhada por uma professora de música, cresce com o intuito
de se tornar a primeira negra a apresentar um concerto clássico de piano.
Nina é recusada num famoso
instituto de aprendizagem musical justamente pelo motivo que a tinha levado ao
estudo do piano. Afinal, uma negra não poderia, de forma alguma, ter sua imagem
ligada à música clássica. Se o mundo perdeu um nome de peso relacionado à
erudição musical, por outro lado, ganhou uma artista popular genial. Algum
tempo depois da negativa, sobrevivendo através de apresentações em bares e
pequenas casas de show, Nina vai se transformando na nova estrela do Jazz e do
Blues, numa carreira cujos holofotes da fama pareciam iluminar de maneira
incessável.
Mas o que parecia ser um final
feliz se transforma no começo do fim. A entrada de um marido violento e
controlador na vida de Nina e a morte de personalidades ligadas ao movimento
pelos direitos civis da época, aliadas à crescente sensação de que ela poderia
– e deveria – peitar o establishment reinante,
jogou-a num espiral de confusão emocional e luta desenfreada contra o racismo,
incluindo-se aí a incitação às armas e ao combate propriamente dito. Tragédia à
vista.
Não apenas nas décadas de 60 e 70
a ideia de combater fogo com fogo era compreendida como justa e fundamental por
muitos militantes de variadas causas. Gays contra homofóbicos, oposicionistas contra
regimes ditatoriais, negros injustiçados contra brancos preconceituosos... A
lista é enorme e as causas das minorias, a meu ver, são importantíssimas. Porém,
a tentação de se utilizar o mesmo comportamento para enfrentar o lado A ou B
pode nos transformar exatamente naquilo que mais repudiamos, principalmente se
adicionarmos ao explosivo coquetel de revanchismo uma boa dose de problema
psicológicos, como aconteceu com Nina. De repente, o que era coragem e redenção
se transforma em ignorância e loucura. Parece o fim.
A cantora ainda tenta, com a
ajuda de vários amigos, retornar à normalidade. Começa a se tratar de um
transtorno mental diagnosticado e, de volta aos palcos timidamente, passa a
apresentar um repertório menos combativo, assim como sua retórica. Pouco a
pouco, os fantasmas e traumas que a assolaram durante um bom período de sua
vida arrefecem, e o documentário nos mostra que ela dá seguimento à caminhada e
encontra bons momentos pela frente, até se despedir desta existência, em abril
de 2003.
Em diferentes épocas, Amy e Nina
enfrentaram os grandes desafios de seus tempos. Mais do que isso: enfrentaram um mal maior
que, dia após dia, segue incólume, angariando pessoas de todos os lugares,
credos e classes. A convocação está aí, no Facebook, nos jornais, nas ruas, na
televisão, em tudo. Não podemos escapar desse ódio, dessa ignorância, mas há
quem diga que uma boa maneira de encarar esse desafio é utilizar o amor, o
entendimento e o discernimento como resposta.
Vai ver que a canção da verdadeira
revolução é entoada em aparente silêncio.
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