"There's a fear I keep so deep / Knew it name since before I could speak (...) If some night I don't come home / Please don't think I've left you alone"- Keep The Car Running, Arcade Fire

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Documentando beleza e destruição: o ontem, o hoje e o sempre

Dois documentários musicais indicados ao Oscar deste ano, Amy (2015), de Asif Kapadia, e What happened, Miss Simone? (2015), de Liz Garbus, estão disponíveis aos assinantes do Netflix. Sei que a notícia não é nova, mas acredito que existem vários “retardatários virtuais” prontos para aproveitar a dica. Como eu, por exemplo.

A primeira obra citada apresenta, através de vídeos caseiros e depoimentos de amigos, produtores, empresários e músicos, a trajetória meteórica da cantora inglesa Amy Winehouse, um furacão neo-soul que lançou dois discos oficiais – um deles, o irrepreensível Back to Black (2006) –, influenciou uma nova geração de artistas e, desorientado por conta do sucesso repentino e de um relacionamento turbulento regado a drogas e álcool, partiu para outro plano aos 27 anos de idade.

O talento de Amy, sua capacidade em criar letras e canções inesquecíveis, utilizando velhas formas em novíssimas embalagens, fica bem claro ao longo do documentário. Da mesma forma, a ideia de que a bola de neve emocional relacionada à vida particular da cantora não parava de crescer, transformando-se em pouco tempo numa avalanche de dor e desorientação, confirma-se de maneira plena. Já vimos essa história. Provavelmente, continuaremos vendo.

Talvez, o mais triste de tudo seja a constatação de que a deterioração emocional, física e profissional da artista é acompanhada com prazer e obsessão principalmente pela mídia. Se após a morte da cantora não faltam elogios e pesares, antes, o que valia era a lógica do “quanto pior, melhor”. Construir um novo caminho em meio a todas as dificuldades? Fora de cogitação. Queremos destruição... E agora.

Isso não vale apenas para o caso específico. Do cruzamento entre as estradas do radicalismo e as das soluções fáceis para problemas de extrema complexidade, criou-se um semáforo de merda, sangue – nos olhos – e ignorância, cuja força motriz é alimentada por redes sociais, ódio, gratuito ou não, e total ausência de amor ao próximo – ou a si próprio. Direita, esquerda, centro, extremos... Seja qual for a direção ou o direcionamento, o sinal está sempre verde. Aceleremos rumo à falta de bom senso.

Para frente e avante! Direto ao precipício.



O segundo documentário, What happened, Miss Simone?, também apresenta com maestria o talento e o processo de autodestruição de sua protagonista, a cantora, compositora e instrumentista americana Nina Simone. Acompanhamos a menininha que, apadrinhada por uma professora de música, cresce com o intuito de se tornar a primeira negra a apresentar um concerto clássico de piano.

Nina é recusada num famoso instituto de aprendizagem musical justamente pelo motivo que a tinha levado ao estudo do piano. Afinal, uma negra não poderia, de forma alguma, ter sua imagem ligada à música clássica. Se o mundo perdeu um nome de peso relacionado à erudição musical, por outro lado, ganhou uma artista popular genial. Algum tempo depois da negativa, sobrevivendo através de apresentações em bares e pequenas casas de show, Nina vai se transformando na nova estrela do Jazz e do Blues, numa carreira cujos holofotes da fama pareciam iluminar de maneira incessável.

Mas o que parecia ser um final feliz se transforma no começo do fim. A entrada de um marido violento e controlador na vida de Nina e a morte de personalidades ligadas ao movimento pelos direitos civis da época, aliadas à crescente sensação de que ela poderia – e deveria – peitar o establishment reinante, jogou-a num espiral de confusão emocional e luta desenfreada contra o racismo, incluindo-se aí a incitação às armas e ao combate propriamente dito. Tragédia à vista.

Não apenas nas décadas de 60 e 70 a ideia de combater fogo com fogo era compreendida como justa e fundamental por muitos militantes de variadas causas.  Gays contra homofóbicos, oposicionistas contra regimes ditatoriais, negros injustiçados contra brancos preconceituosos... A lista é enorme e as causas das minorias, a meu ver, são importantíssimas. Porém, a tentação de se utilizar o mesmo comportamento para enfrentar o lado A ou B pode nos transformar exatamente naquilo que mais repudiamos, principalmente se adicionarmos ao explosivo coquetel de revanchismo uma boa dose de problema psicológicos, como aconteceu com Nina. De repente, o que era coragem e redenção se transforma em ignorância e loucura. Parece o fim.

A cantora ainda tenta, com a ajuda de vários amigos, retornar à normalidade. Começa a se tratar de um transtorno mental diagnosticado e, de volta aos palcos timidamente, passa a apresentar um repertório menos combativo, assim como sua retórica. Pouco a pouco, os fantasmas e traumas que a assolaram durante um bom período de sua vida arrefecem, e o documentário nos mostra que ela dá seguimento à caminhada e encontra bons momentos pela frente, até se despedir desta existência, em abril de 2003.

Em diferentes épocas, Amy e Nina enfrentaram os grandes desafios de seus tempos. Mais do que isso: enfrentaram um mal maior que, dia após dia, segue incólume, angariando pessoas de todos os lugares, credos e classes. A convocação está aí, no Facebook, nos jornais, nas ruas, na televisão, em tudo. Não podemos escapar desse ódio, dessa ignorância, mas há quem diga que uma boa maneira de encarar esse desafio é utilizar o amor, o entendimento e o discernimento como resposta.

Vai ver que a canção da verdadeira revolução é entoada em aparente silêncio. 



Por Hugo Oliveira 

  




    

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