João abriu o zíper da mochila e
colocou a mão dentro do compartimento. Vasculhou um pouco e, rapidamente,
encontrou o que queria: o revólver.
Calibre 38, o famoso
“três-oitão”. Colocou o dedo no gatilho, sentindo a temperatura da peça.
O frio do ferro misturou-se ao
calor da pele. Estava nervoso.
De repente, como se tivesse
tomado uma descarga elétrica, retirou a mão da bolsa e, levantando-se do
assento do ônibus de forma desajeitada, deu o sinal.
Puxou a cordinha do coletivo
durante uma curva. Um pouco desequilibrado, bateu com o ombro direito na
janela. Não foi um choque forte, mas toda a situação o deixou possesso.
- Tá querendo matar a gente,
“motô”? Tem criança no buzão, caralho!
Outros passageiros também
reclamaram da velocidade do veículo durante a curva sinuosa. Alguns protestaram
de forma educada, alegando que o condutor deveria ser mais prudente; outros
xingaram o homem de “barbeiro”, “filho da puta” e “cuzão”.
O motorista não revidou. Talvez,
por saber que havia cometido um erro — ou envergonhado por ser repreendido de
forma tão dura –, preferiu o silêncio. Parou no ponto, abriu a porta traseira e
apenas uma pessoa estava descendo. Era João.
Pelo espelho interno do ônibus
vislumbrou o passageiro. Um homem jovem que segurava uma mochila embaixo do
braço direito e, com a mão esquerda livre, apontava o dedo do meio a ele. Não
conseguiu conter a raiva.
- Arrombado!, gritou o motorista.
João escutou a ofensa, mas
resolveu deixar pra lá. Estava a poucos metros do local. Aquilo ia mudar sua
vida. Para sempre.
Vislumbrou a fachada do prédio e
entrou. Sabia o que fazer e como deveria agir. Estudou o ambiente e as poucas
pessoas presentes com uma rapidez impressionante. Avistou seu alvo e,
dirigindo-se a ele, procurou o zíper da mochila, para finalizar o que havia
ensaiado durante todo o final de semana.
Nem precisou sentar. Fez o que
tinha que fazer em pé, de frente para o guichê, enquanto a mão vasculhava o
interior da bolsa.
- Ô gente boa, diz aí: é aqui que
funciona o…
Parou de repente. Sentiu-se
tonto, enjoado. De súbito, foi tomado pelo pavor.
O homem, que digitava de forma
barulhenta num teclado, desligou-se do monitor e voltou sua atenção à pessoa
que havia começado a fazer uma pergunta.
- Pois não, senhor?
- Não, é que… Porra… Só um
instante!
O atendente nada compreendeu ao
ver o rapaz correndo em direção à porta. Assim que saiu do edifício, João ficou
na ponta dos pés, mirando todas as direções possíveis.
Teve um estalo. O desespero
transformou-se em estado de graça. Suor e lágrimas molhavam seu rosto. Suor,
lágrimas e chuva, já que fortes pingos começaram a cair do céu.
João não parecia se importar com
o temporal que se aproximava. Mesmo desnorteado, conseguiu direcionar seus
passos ao caminho de casa. Assim que deu início ao retorno, uma tempestade
tropical desabou, mas ele não procurou abrigo nas marquises.
Seguiu quase pelo meio da rua. Um
pouco à frente, parou numa faixa de pedestres. Levantou a cabeça e, com os
olhos fechados por causa das grandes gotas que atrapalhavam a visão, abriu os
braços no meio das pessoas que atravessavam para ambos os lados.
O sinal estava verde; a camisa
branca de João, encharcada. Queria gritar, mas só conseguiu emitir um fiapo de
voz.
- Deus…
***
Apesar de exausto por conta da
longa caminhada que fez, não passava pela cabeça de João deixar de ir ao culto
daquela noite. Ele tinha um motivo especial para comparecer ao encontro: um
testemunho genuíno da ação de Deus em sua vida.
Assim, não foi com desânimo que
recebeu a notícia. Por conta das chuvas torrenciais que assolaram a cidade, a
igreja da comunidade onde vivia foi inundada. O ato religioso seria realizado
em outro bairro, um pouco mais distante. Mas nada iria impedi-lo. Já era um
novo homem, e precisava oficializar sua condição.
Chegou ao local do culto um pouco
antes do início. A bainha da calça social azul marinho ficou manchada de barro;
o par de sapatos preto que havia conseguido com um primo parecia tingido de
marrom por causa das ruas cheias de lama que precisou atravessar. Ainda assim,
sua nova fé mantinha-se inabalável.
Como estava fora da igreja,
procurou algum mercado que estivesse aberto naquele horário. No final da rua,
avistou algo parecido com um boteco. Atravessou para o outro lado tomando
cuidado para não sujar sua roupa ainda mais. Meteu a mão no bolso direito e
puxou as moedas que tinha, contando-as sem deixar de caminhar rumo ao barzinho.
Não teve tempo de desviar da pessoa que vinha em sua direção, saindo do
estabelecimento. Chocaram-se.
Setenta centavos caíram no chão. Sem
pensar, João abaixou para pegar as moedinhas que ia usar na compra de uma
garrafa d’água, com medo que elas rolassem para o valão ao lado. O homem também
teve a mesma reação.
Abaixados, fitaram-se. João e o
motorista do ônibus que havia pegado naquela manhã.
Levantaram-se no mesmo momento.
Sentiram coisas diferentes naquela fração de segundo. João percebeu que o
hálito do motorista fedia a cachaça. Ia tentar pronunciar alguma coisa, mas foi
impedido. Seu olfato ainda continuou trabalhando, passando do cheiro de pinga
para outro odor que conhecia bem, o de pólvora. Depois, tudo escureceu.
O motorista, por sua vez, reparou
nas roupas de João. Ele parecia outra pessoa com aquele traje social. Pensou em
deixar pra lá, mas o ódio refrescou sua memória já molhada pelo álcool. Estava
bêbado, mas ainda tinha agilidade. O corpo, que estava abaixado, procurando as
moedas da pessoa com quem havia trombado, levantou-se numa velocidade
espantosa. Colocou a mão direita no bolso. Puxou o revólver já com o dedo no
gatilho. Tudo escureceu depois.
Embora estivesse tão machucado
quanto assustado, ele não podia dar-se o luxo de faltar ao trabalho. Na tarde
anterior, alguns passageiros ligaram para a empresa de ônibus onde ele
trabalhava para denunciar o “motorista doidão que fazia curvas em alta
velocidade”. Tentou argumentar com o chefe que foi a única vez que isso
aconteceu, mas não teve sucesso. Ganhou um esporro monumental e ainda recebeu
uma advertência, perdendo o bônus em dinheiro que ganharia caso nada de errado ocorresse
naquele mês de trabalho.
Entrou no ônibus com o peso do
mundo nas costas. Suas mãos tremiam ao volante. Faria a mesma rota que havia
feito no fatídico dia. Lembrava-se de quase tudo: deu de cara com o filho da
puta que fez com que ele fosse penalizado no trabalho… Justamente depois que
ele entornou todas numa birosca perto da gerência da Viação Destino; como
estava com uma arma que havia achado dentro do coletivo, naquele mesmo dia,
teve o impulso de mandar chumbo pra dentro do merdinha. Apertou o gatilho só
uma vez. Achou ter sido o suficiente.
Depois disso, tudo foi muito
rápido. Pulou o muro de um barraco e, em seguida, invadiu outro quintal. Seguiu
para a área dos fundos, que dava para um matagal sem tamanho. Correu o quanto
pode e desmaiou de cansaço. Acordou assustado, com a cabeça explodindo e o dia
raiando. Em poucos minutos conseguiu descobrir onde estava. Caminhou até a rua
principal, pegou carona com um motorista conhecido e seguiu para o trabalho. Ao
chegar, pediu um uniforme novo, dando a desculpa de que havia tomado um tombo
no trajeto para o serviço. Por sorte conseguiu.
Prestes a dar partida, viu que
dois colegas corriam na direção do ônibus, pedindo para que ele esperasse.
Abriu a porta da frente sem desligar o veículo, já temendo o pior.
- Você tá bem, cara?
- Sim, sim. Estou bem…
- Ficamos preocupados, cabra.
Mataram um vagabundo perto da gerência. O nome do cara também era João, e ele
usava uma roupa parecida com o nosso uniforme de trabalho. Mas você tá bem,
porra. Vai trabalhar, cornão!
Os companheiros de trabalho
saíram rindo, empurrando um ao outro. João pisou no acelerador e deu início a
mais um dia de luta.
Com meia hora rodando pela
cidade, chegou ao ponto onde o rapaz “metido a macho” pediu para parar, no dia
anterior. Lembrou que só havia acelerado porque ninguém tinha feito qualquer
menção de ficar naquele local.
- Aí, o desgraçado que devia
estar dormindo acorda, puxa a cordinha no susto e ainda reclama de velocidade.
Tinha mais é que se foder mesmo!, pensa alto João, o motorista, sobre João, o
passageiro.
Ninguém demonstra interesse em
descer no ponto. João relaxa, mas num piscar de olhos, como se recordasse de
algo muito importante, dá uma freada brusca. Os passageiros reclamam.
- Porra, motorista! Tá cheirado,
caralho?
Ele não responde. Abre a porta da
frente, cochicha algumas palavras com o cobrador e segue para um prédio
próximo. O “ferro” está no bolso esquerdo da calça.
Lá dentro, segue para o primeiro
atendente que parece disponível. Não poderia ter sido mais certeiro: uma
plaquinha com os escritos “Campanha Nacional do Desarmamento” repousa na mesa
do homem.
- Pois não, senhor?
- Rapaz, eu queria saber como
funciona essa…
A pergunta de João é interrompida
por outro atendente, que chega à mesa num estado de euforia.
- Eu sabia, porra!
- Sabia o que, bonitão?
-Mataram um cara ontem à noite,
perto de um boteco da Favela dos Coitados. Eu vi essa notícia naquele jornal da
madrugada.
- E daí?
- E daí que, depois daquele
aguaceiro do caralho que caiu ontem, vários equipamentos entraram em
curto-circuito nesta porra de delegacia. As câmeras foram as primeiras a
bichar. O técnico está até agora mexendo nelas. A única coisa que ele conseguiu
recuperar, por enquanto, foram imagens gravadas um pouco antes do temporal. Fui
olhar as filmagens e vi um cara entrando aqui. Fiquei com o rosto dele na
cabeça, mesmo sem saber o motivo. Aí, acabei me lembrando do telejornal e
comparei as imagens mentalmente. Era o cara… E ele estava justamente na sua
mesa!
- Tá de sacanagem?
- Claro que não! Quer ver? Pede
licença pro amigo aí e vamos até a sala do vídeo.
- Só se for agora!… Só um
instantinho, senhor… É um assunto urgente.
Os dois homens saem. João está na
mesa. Ele pensa no que os atendentes conversaram e tem uma ideia. De onde está,
consegue vê-los entrando numa outra sala. Ele espera alguns segundos, olha para
os lados e, num gesto rápido, coloca o revólver embaixo de uma pilha de papéis.
Sai de lá como se nada tivesse
acontecido.
João caminha em direção ao
ônibus. O sol brilha. Olhando para dentro do coletivo, consegue identificar
expressões de revolta nos rostos dos passageiros. Não ouve suas vozes, mas tem
certeza de que estão fazendo xingamentos.
O motorista parece estar em
transe. Levanta a cabeça em direção ao céu e, fechando os olhos por conta da
claridade, abre os braços.
De sua boca, uma única palavra:
- Deus…
Por Hugo Oliveira