"There's a fear I keep so deep / Knew it name since before I could speak (...) If some night I don't come home / Please don't think I've left you alone"- Keep The Car Running, Arcade Fire

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Joões de Deus

João abriu o zíper da mochila e colocou a mão dentro do compartimento. Vasculhou um pouco e, rapidamente, encontrou o que queria: o revólver.

Calibre 38, o famoso “três-oitão”. Colocou o dedo no gatilho, sentindo a temperatura da peça.

O frio do ferro misturou-se ao calor da pele. Estava nervoso.

De repente, como se tivesse tomado uma descarga elétrica, retirou a mão da bolsa e, levantando-se do assento do ônibus de forma desajeitada, deu o sinal.

Puxou a cordinha do coletivo durante uma curva. Um pouco desequilibrado, bateu com o ombro direito na janela. Não foi um choque forte, mas toda a situação o deixou possesso.

- Tá querendo matar a gente, “motô”? Tem criança no buzão, caralho!

Outros passageiros também reclamaram da velocidade do veículo durante a curva sinuosa. Alguns protestaram de forma educada, alegando que o condutor deveria ser mais prudente; outros xingaram o homem de “barbeiro”, “filho da puta” e “cuzão”.

O motorista não revidou. Talvez, por saber que havia cometido um erro — ou envergonhado por ser repreendido de forma tão dura –, preferiu o silêncio. Parou no ponto, abriu a porta traseira e apenas uma pessoa estava descendo. Era João.

Pelo espelho interno do ônibus vislumbrou o passageiro. Um homem jovem que segurava uma mochila embaixo do braço direito e, com a mão esquerda livre, apontava o dedo do meio a ele. Não conseguiu conter a raiva.

- Arrombado!, gritou o motorista.

João escutou a ofensa, mas resolveu deixar pra lá. Estava a poucos metros do local. Aquilo ia mudar sua vida. Para sempre.

Vislumbrou a fachada do prédio e entrou. Sabia o que fazer e como deveria agir. Estudou o ambiente e as poucas pessoas presentes com uma rapidez impressionante. Avistou seu alvo e, dirigindo-se a ele, procurou o zíper da mochila, para finalizar o que havia ensaiado durante todo o final de semana.

Nem precisou sentar. Fez o que tinha que fazer em pé, de frente para o guichê, enquanto a mão vasculhava o interior da bolsa.

- Ô gente boa, diz aí: é aqui que funciona o…

Parou de repente. Sentiu-se tonto, enjoado. De súbito, foi tomado pelo pavor.

O homem, que digitava de forma barulhenta num teclado, desligou-se do monitor e voltou sua atenção à pessoa que havia começado a fazer uma pergunta.

- Pois não, senhor?

- Não, é que… Porra… Só um instante!

O atendente nada compreendeu ao ver o rapaz correndo em direção à porta. Assim que saiu do edifício, João ficou na ponta dos pés, mirando todas as direções possíveis.

Teve um estalo. O desespero transformou-se em estado de graça. Suor e lágrimas molhavam seu rosto. Suor, lágrimas e chuva, já que fortes pingos começaram a cair do céu.

João não parecia se importar com o temporal que se aproximava. Mesmo desnorteado, conseguiu direcionar seus passos ao caminho de casa. Assim que deu início ao retorno, uma tempestade tropical desabou, mas ele não procurou abrigo nas marquises.

Seguiu quase pelo meio da rua. Um pouco à frente, parou numa faixa de pedestres. Levantou a cabeça e, com os olhos fechados por causa das grandes gotas que atrapalhavam a visão, abriu os braços no meio das pessoas que atravessavam para ambos os lados.

O sinal estava verde; a camisa branca de João, encharcada. Queria gritar, mas só conseguiu emitir um fiapo de voz.

- Deus…

                                                                             ***


Apesar de exausto por conta da longa caminhada que fez, não passava pela cabeça de João deixar de ir ao culto daquela noite. Ele tinha um motivo especial para comparecer ao encontro: um testemunho genuíno da ação de Deus em sua vida.

Assim, não foi com desânimo que recebeu a notícia. Por conta das chuvas torrenciais que assolaram a cidade, a igreja da comunidade onde vivia foi inundada. O ato religioso seria realizado em outro bairro, um pouco mais distante. Mas nada iria impedi-lo. Já era um novo homem, e precisava oficializar sua condição.

Chegou ao local do culto um pouco antes do início. A bainha da calça social azul marinho ficou manchada de barro; o par de sapatos preto que havia conseguido com um primo parecia tingido de marrom por causa das ruas cheias de lama que precisou atravessar. Ainda assim, sua nova fé mantinha-se inabalável.

Como estava fora da igreja, procurou algum mercado que estivesse aberto naquele horário. No final da rua, avistou algo parecido com um boteco. Atravessou para o outro lado tomando cuidado para não sujar sua roupa ainda mais. Meteu a mão no bolso direito e puxou as moedas que tinha, contando-as sem deixar de caminhar rumo ao barzinho. Não teve tempo de desviar da pessoa que vinha em sua direção, saindo do estabelecimento. Chocaram-se.

Setenta centavos caíram no chão. Sem pensar, João abaixou para pegar as moedinhas que ia usar na compra de uma garrafa d’água, com medo que elas rolassem para o valão ao lado. O homem também teve a mesma reação.

Abaixados, fitaram-se. João e o motorista do ônibus que havia pegado naquela manhã.

Levantaram-se no mesmo momento. Sentiram coisas diferentes naquela fração de segundo. João percebeu que o hálito do motorista fedia a cachaça. Ia tentar pronunciar alguma coisa, mas foi impedido. Seu olfato ainda continuou trabalhando, passando do cheiro de pinga para outro odor que conhecia bem, o de pólvora. Depois, tudo escureceu.

O motorista, por sua vez, reparou nas roupas de João. Ele parecia outra pessoa com aquele traje social. Pensou em deixar pra lá, mas o ódio refrescou sua memória já molhada pelo álcool. Estava bêbado, mas ainda tinha agilidade. O corpo, que estava abaixado, procurando as moedas da pessoa com quem havia trombado, levantou-se numa velocidade espantosa. Colocou a mão direita no bolso. Puxou o revólver já com o dedo no gatilho. Tudo escureceu depois.
                                                                 
        
                                                                       ***

Embora estivesse tão machucado quanto assustado, ele não podia dar-se o luxo de faltar ao trabalho. Na tarde anterior, alguns passageiros ligaram para a empresa de ônibus onde ele trabalhava para denunciar o “motorista doidão que fazia curvas em alta velocidade”. Tentou argumentar com o chefe que foi a única vez que isso aconteceu, mas não teve sucesso. Ganhou um esporro monumental e ainda recebeu uma advertência, perdendo o bônus em dinheiro que ganharia caso nada de errado ocorresse naquele mês de trabalho.

Entrou no ônibus com o peso do mundo nas costas. Suas mãos tremiam ao volante. Faria a mesma rota que havia feito no fatídico dia. Lembrava-se de quase tudo: deu de cara com o filho da puta que fez com que ele fosse penalizado no trabalho… Justamente depois que ele entornou todas numa birosca perto da gerência da Viação Destino; como estava com uma arma que havia achado dentro do coletivo, naquele mesmo dia, teve o impulso de mandar chumbo pra dentro do merdinha. Apertou o gatilho só uma vez. Achou ter sido o suficiente.

Depois disso, tudo foi muito rápido. Pulou o muro de um barraco e, em seguida, invadiu outro quintal. Seguiu para a área dos fundos, que dava para um matagal sem tamanho. Correu o quanto pode e desmaiou de cansaço. Acordou assustado, com a cabeça explodindo e o dia raiando. Em poucos minutos conseguiu descobrir onde estava. Caminhou até a rua principal, pegou carona com um motorista conhecido e seguiu para o trabalho. Ao chegar, pediu um uniforme novo, dando a desculpa de que havia tomado um tombo no trajeto para o serviço. Por sorte conseguiu.

Prestes a dar partida, viu que dois colegas corriam na direção do ônibus, pedindo para que ele esperasse. Abriu a porta da frente sem desligar o veículo, já temendo o pior.

- Você tá bem, cara?

- Sim, sim. Estou bem…

- Ficamos preocupados, cabra. Mataram um vagabundo perto da gerência. O nome do cara também era João, e ele usava uma roupa parecida com o nosso uniforme de trabalho. Mas você tá bem, porra. Vai trabalhar, cornão!

Os companheiros de trabalho saíram rindo, empurrando um ao outro. João pisou no acelerador e deu início a mais um dia de luta.

Com meia hora rodando pela cidade, chegou ao ponto onde o rapaz “metido a macho” pediu para parar, no dia anterior. Lembrou que só havia acelerado porque ninguém tinha feito qualquer menção de ficar naquele local.

- Aí, o desgraçado que devia estar dormindo acorda, puxa a cordinha no susto e ainda reclama de velocidade. Tinha mais é que se foder mesmo!, pensa alto João, o motorista, sobre João, o passageiro.

Ninguém demonstra interesse em descer no ponto. João relaxa, mas num piscar de olhos, como se recordasse de algo muito importante, dá uma freada brusca. Os passageiros reclamam.

- Porra, motorista! Tá cheirado, caralho?

Ele não responde. Abre a porta da frente, cochicha algumas palavras com o cobrador e segue para um prédio próximo. O “ferro” está no bolso esquerdo da calça.

Lá dentro, segue para o primeiro atendente que parece disponível. Não poderia ter sido mais certeiro: uma plaquinha com os escritos “Campanha Nacional do Desarmamento” repousa na mesa do homem.

- Pois não, senhor?

- Rapaz, eu queria saber como funciona essa…

A pergunta de João é interrompida por outro atendente, que chega à mesa num estado de euforia.

- Eu sabia, porra!

- Sabia o que, bonitão?

-Mataram um cara ontem à noite, perto de um boteco da Favela dos Coitados. Eu vi essa notícia naquele jornal da madrugada.

- E daí?

- E daí que, depois daquele aguaceiro do caralho que caiu ontem, vários equipamentos entraram em curto-circuito nesta porra de delegacia. As câmeras foram as primeiras a bichar. O técnico está até agora mexendo nelas. A única coisa que ele conseguiu recuperar, por enquanto, foram imagens gravadas um pouco antes do temporal. Fui olhar as filmagens e vi um cara entrando aqui. Fiquei com o rosto dele na cabeça, mesmo sem saber o motivo. Aí, acabei me lembrando do telejornal e comparei as imagens mentalmente. Era o cara… E ele estava justamente na sua mesa!

- Tá de sacanagem?

- Claro que não! Quer ver? Pede licença pro amigo aí e vamos até a sala do vídeo.

- Só se for agora!… Só um instantinho, senhor… É um assunto urgente.

Os dois homens saem. João está na mesa. Ele pensa no que os atendentes conversaram e tem uma ideia. De onde está, consegue vê-los entrando numa outra sala. Ele espera alguns segundos, olha para os lados e, num gesto rápido, coloca o revólver embaixo de uma pilha de papéis.

Sai de lá como se nada tivesse acontecido.

João caminha em direção ao ônibus. O sol brilha. Olhando para dentro do coletivo, consegue identificar expressões de revolta nos rostos dos passageiros. Não ouve suas vozes, mas tem certeza de que estão fazendo xingamentos.

O motorista parece estar em transe. Levanta a cabeça em direção ao céu e, fechando os olhos por conta da claridade, abre os braços.

De sua boca, uma única palavra:

- Deus…



Por Hugo Oliveira



5 comentários:

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