As obras de arte,
normalmente, prestam-se a múltiplas interpretações. Podem despertar uma infinidade
de sentimentos a depender de quem as consome, do momento vivido, entre outras
circunstâncias. Porém, há algumas cujo sentimento é expresso de forma tal que o
mesmo se impõe independente do momento pessoal ou do contexto de recepção. É o
caso de Graham Nash & David Crosby, de
1972: um álbum sobre a solidão.
A primeira canção, “Southbound
Train”, é um country tradicional de retorno ao sul (a morte?), em que
Graham Nash (nos) pergunta quase a desafiar: “Can you carry the torch that'll
bring home the dead?”; expõe as feridas (“Are you angry and tired that your
point has been missed?”) e, na última estrofe: “Fraternity failing to fight
back the tears / Will it take an eternity breaking all the fears?”. Em “Whole Cloth”, entre guitarras rascantes, mais
questionamentos: em que você baseia a vida? Sozinho, em uma noite fria e
tempestuosa, que estrela guia seu olhar? E entre o reconhecimento de
autoenganos e acomodação, a quase súplica por um espelho em que o eu-lírico
possa voltar a se enxergar. Já deu pra sentir o clima, não?
Após
as duas primeiras pancadas, uma curta balada metalinguística ao piano, “Blacknotes”,
desemboca em “Strangers Room”, canção dolorida, com o primor vocal
característico da dupla, apresentando um homem perdido em uma sala de
estranhos, a suplicar ajuda, sem conseguir encontrar a luz ou ao menos saber
pra onde vai, do que está fugindo. Em “Where Will I be?”, David Crosby
sintetiza o disco em letra, música, delicadeza e angústia, numa interpretação
assombrosa de uma canção que poderia fazer parte de “If I could only remember
my name”, seu primeiro lp solo. Fechando a primeira parte, uma das mais
belas do álbum, “Page 43”, uma reflexão melancólica sobre aproveitar o que a
vida nos apresenta, apesar da repetição da mesma velha história...
O lado
b abre com “Frozen Smiles”, mais “animada” ritmicamente, no entanto continuando
o peso temático das demais, é um conselho para um amigo que vive “entre muros”,
isolado, levando a vida de forma muito dura, para que o mesmo tente se abrir
mais e acreditar em si mesmo. Em “Games”, um fim de relacionamento é a senha
para reflexão do quanto os “jogos” (de poder, do conflito, do ‘querer mais’)
matam o amor. A número nove (que deveria ser a 7) é mais uma balada nashniana,
em que um homem solitário vê mais um ano passar, tentando ficar bem enquanto
aguarda seu ressurgimento, procurando confiar no tempo, tentando encontrar “a
girl to be on my mind”. A seguinte, “The Wall Song”, retoma a espécie de figura
recorrente do álbum, um homem “emparedado” em uma cerca feita de lágrimas onde
não pode ser ouvido, um ser a caminhar, tropeçando meio cego e seco como o
vento. A última canção, “Immigration Man”, mostra um homem tendo problemas com
um oficial da imigração para entrar em outro país. Pode destoar um pouco da
minha interpretação para o disco, mas não deixa de ser solitário alguém preso
na fronteira, sem poder entrar no território desejado.
Nessas
onze canções, David Crosby e Graham Nash conseguiram, através de um misto de
escuridão (desde a capa, aliás) e beleza, um panorama atemporal de um homem
angustiado, reflexivo e, acima de tudo, solitário.
Por Ricardo Pereira
Ainda não ouvi esse álbum, deve ser demais. Adorei a descrição dele, várias canções que eu já me identifico sem ouvir.
ResponderExcluirCaro Ricardo, acompanho este espaço sempre que posso e esta é a melhor resenha que li por aqui, ou melhor, é a melhor resenha que leio em muito tempo. Fui atrás do disco é exatamente como o descreveu. Voce escreve muito bem, mas seu ponto forte é o fato de cada frase sua vir carregada de sentimento. Continue com o bom trabalho, um abraço.
ResponderExcluirRoberto Alexandre
roberto.alexandre77@gmail.com
Vale procurar Mayra, o disco é lindo!
ResponderExcluirObrigado mesmo Roberto, fico feliz que tenha gostado tanto do texto quanto do disco. Abraço.
É lindo mesmo, comprovei esses dias, várias vezes, hehe.
ResponderExcluirMayra, que bom que gostou!!
ResponderExcluirBjs