"There's a fear I keep so deep / Knew it name since before I could speak (...) If some night I don't come home / Please don't think I've left you alone"- Keep The Car Running, Arcade Fire

sábado, 21 de janeiro de 2012

Sobre estar só - Graham Nash & David Crosby, 1972



As obras de arte, normalmente, prestam-se a múltiplas interpretações. Podem despertar uma infinidade de sentimentos a depender de quem as consome, do momento vivido, entre outras circunstâncias. Porém, há algumas cujo sentimento é expresso de forma tal que o mesmo se impõe independente do momento pessoal ou do contexto de recepção. É o caso de Graham Nash & David Crosby, de 1972: um álbum sobre a solidão.

A primeira canção, “Southbound Train”, é um country tradicional de retorno ao sul (a morte?), em que Graham Nash (nos) pergunta quase a desafiar: “Can you carry the torch that'll bring home the dead?”; expõe as feridas (“Are you angry and tired that your point has been missed?”) e, na última estrofe: “Fraternity failing to fight back the tears / Will it take an eternity breaking all the fears?”. Em “Whole Cloth”, entre guitarras rascantes, mais questionamentos: em que você baseia a vida? Sozinho, em uma noite fria e tempestuosa, que estrela guia seu olhar? E entre o reconhecimento de autoenganos e acomodação, a quase súplica por um espelho em que o eu-lírico possa voltar a se enxergar. Já deu pra sentir o clima, não?

Após as duas primeiras pancadas, uma curta balada metalinguística ao piano, “Blacknotes”, desemboca em “Strangers Room”, canção dolorida, com o primor vocal característico da dupla, apresentando um homem perdido em uma sala de estranhos, a suplicar ajuda, sem conseguir encontrar a luz ou ao menos saber pra onde vai, do que está fugindo. Em “Where Will I be?”, David Crosby sintetiza o disco em letra, música, delicadeza e angústia, numa interpretação assombrosa de uma canção que poderia fazer parte de “If I could only remember my name”, seu primeiro lp solo. Fechando a primeira parte, uma das mais belas do álbum, “Page 43”, uma reflexão melancólica sobre aproveitar o que a vida nos apresenta, apesar da repetição da mesma velha história...

O lado b abre com “Frozen Smiles”, mais “animada” ritmicamente, no entanto continuando o peso temático das demais, é um conselho para um amigo que vive “entre muros”, isolado, levando a vida de forma muito dura, para que o mesmo tente se abrir mais e acreditar em si mesmo. Em “Games”, um fim de relacionamento é a senha para reflexão do quanto os “jogos” (de poder, do conflito, do ‘querer mais’) matam o amor. A número nove (que deveria ser a 7) é mais uma balada nashniana, em que um homem solitário vê mais um ano passar, tentando ficar bem enquanto aguarda seu ressurgimento, procurando confiar no tempo, tentando encontrar “a girl to be on my mind”. A seguinte, “The Wall Song”, retoma a espécie de figura recorrente do álbum, um homem “emparedado” em uma cerca feita de lágrimas onde não pode ser ouvido, um ser a caminhar, tropeçando meio cego e seco como o vento. A última canção, “Immigration Man”, mostra um homem tendo problemas com um oficial da imigração para entrar em outro país. Pode destoar um pouco da minha interpretação para o disco, mas não deixa de ser solitário alguém preso na fronteira, sem poder entrar no território desejado.

Nessas onze canções, David Crosby e Graham Nash conseguiram, através de um misto de escuridão (desde a capa, aliás) e beleza, um panorama atemporal de um homem angustiado, reflexivo e, acima de tudo, solitário.

Por Ricardo Pereira

5 comentários:

  1. Ainda não ouvi esse álbum, deve ser demais. Adorei a descrição dele, várias canções que eu já me identifico sem ouvir.

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  2. Caro Ricardo, acompanho este espaço sempre que posso e esta é a melhor resenha que li por aqui, ou melhor, é a melhor resenha que leio em muito tempo. Fui atrás do disco é exatamente como o descreveu. Voce escreve muito bem, mas seu ponto forte é o fato de cada frase sua vir carregada de sentimento. Continue com o bom trabalho, um abraço.
    Roberto Alexandre
    roberto.alexandre77@gmail.com

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  3. Vale procurar Mayra, o disco é lindo!

    Obrigado mesmo Roberto, fico feliz que tenha gostado tanto do texto quanto do disco. Abraço.

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  4. É lindo mesmo, comprovei esses dias, várias vezes, hehe.

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