"There's a fear I keep so deep / Knew it name since before I could speak (...) If some night I don't come home / Please don't think I've left you alone"- Keep The Car Running, Arcade Fire

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Recorte etílico

Ei, posso me sentar ao lado do senhor? Não, não sou veado, porra, preciso só falar e você tem uma cara confiável. Posso chamar de você, ok? Não quer companhia? Quero só que me escute. Pode pedir qualquer bebida, é por minha conta. Uísque? Ok. Traz o uísque que o bacana quiser aqui!

O senhor já se sentiu miserável? Não, não é de dinheiro que estou falando... A sensação de olhar ao redor e se sentir mais filho da puta do que qualquer filho da puta, mais cão sarnento que do que o mais sujo cão da rua? O senhor desculpe meu vocabulário, também tô dramático pra caralho, é que já tô bêbado. Saiba o senhor que não costumo desabafar com qualquer estranho na rua não, mas hoje preciso mais do que nunca. Estou há dois anos nessa cidade de merda e não conheço ninguém.

Vim fugido pra cá, mas não de polícia ou de dívida não. Vim fugindo de mim mesmo, dos meus fantasmas. Pela sua cara vejo que não entende porra nenhuma do que estou falando, isso é uma idiotice completa... Não, vai embora não, vem cá... Tá bom, tá bom, desculpa, camarada, desculpa. Me responde uma coisa, o senhor já acreditou em algo mais do que na própria vida? Acho que os homens têm que acreditar em algo pra seguir em frente, seja numa mulher, no emprego, em ganhar na loteria, num time de futebol, não importa. Mas eu fiz pior, acreditei no amor. Pode rir. Tudo bem, mais um uísque aqui. Vejo que o senhor é muito educado, mesmo me achando um idiota, continua me ouvindo e ainda sem rir de mim, saiba que fico muito agradecido. Peço apenas que se nos virmos novamente, finja que não me conhece, ok? Fico agradecido.

Sempre fui um imbecil completo. Achava que eu era melhor do que todo mundo porque lia muito, achava que eu era o supra-sumo do bom gosto, andava na rua com olhar superior, julgando todo mundo. Inferiorizava a moça com o livro de autoajuda no ônibus, desprezava a senhorinha que não vive sem a novela das oito. E no fundo, no fundo, eu sempre fui mais boçal e ingênuo do que qualquer mocinha noveleira de interior. Pensava que encontraria um grande amor, ia ser feliz, dedicar minha vida a isso. Não precisa comentar, é patético, eu sei. Na busca desse amor idealizado, vivia insatisfeito.

Olha, falando isso pro senhor agora, minha vontade é me encher de porrada. Eu criticava os idiotas do mundo e era pior do que o pior deles, pode ter certeza disso. Uma vez eu encontrei esse amor, achei que tinha encontrado. Ok, já sei o que está pensando, eu não era esse trapo que o senhor está vendo, era até bem apessoado. Eu me apaixonei e fiquei maluco, cego ou qualquer outro clichê que se possa pensar. A gente tinha que ouvir mais o que nossa mãe diz, eu já não era menino, mas minha mãe, que Deus a guarde, me chamou como se eu fosse um e falou: “essa mulher vai desgraçar sua vida”. Eu escutei, sorri e segui em frente. Há dois meses, recebi um telegrama me avisando da morte dela e a primeira coisa que pensei foi nisso, ouvi a voz dela mais uma vez me dizendo esse refrão que condensa a que minha vida estava condenada a partir daí.

Eu vivi em função dela. Não, não da minha mãe, ô cara. Da moça por quem me apaixonei. Eu ignorava todas as diferenças, mudei a minha vida toda por causa dela. Mudei de casa, de emprego, fiz o diabo. Minha alma estava imersa em amor, parafraseando o Thom Yorke. Quem? Não sabe quem é? Deixa pra lá... Me dediquei a esse amor como nunca havia me dedicado a nada na vida. A mulher pra mim funcionava como esses antidepressivos que são a tábua de salvação de tudo que é madame hoje em dia, eu via tudo maravilhoso. E era correspondido, era recompensado. Ela gostou de mim, sim senhor. Mas eu sempre levei tudo a sério demais, me perdi no meio disso tudo. Ei, amigo, traz mais dois pra mim.

Eu não vou falar aqui pro senhor como que tudo acabou, levaria a noite toda pra que o senhor entendesse. Não, não fui corno não e nem corneei ela, mas acabou assim. De uma hora pra outra, como a morte quando aparece inesperada. Uma porrada seca, e ‘aprenda a viver sem, meu filho’. A princípio, fiquei anestesiado, mas com o tempo tudo foi piorando. O mundo virou cada vez opressivo, não via mais graça em nada. O tempo passava, a vida passava e eu inerte, imóvel. Às vezes recebia qualquer notícia dela e era como um soco no estômago, só de saber que ela existia, que ela respirava, sentia uma vertigem, como se me faltasse a alma.

E o pior, não conseguia ter mais nada com ninguém. O senhor tá vendo aquela moça ali de vestido azul, com aquele babaca ali. É bem o meu tipo de mulher. Se na época, ela chegasse a mim e falasse que queria qualquer coisa comigo, eu saía fora. Se qualquer mulher aparecesse e me quisesse, era o mesmo que nada pra mim. Sabe, Simple twist of fate? Aquele vazio que o cara sente ao abrir a janela? Não, Bob Dylan, também não ouviu falar? Me desculpe, mas o senhor não conhece porra nenhuma também, hein?

Eu fui ficando pior e meus amigos até que tentaram me ajudar. Eu fazia o jogo deles, da minha família. Hoje é engraçado lembrar disso, porque parece que estou fazendo pouco caso, mas sinto uma falta danada deles, perdido aqui nessa terra-de-ninguém. Se houvesse qualquer um deles aqui, poderia estar melhor, compartilhando todo esse lixo, ou sem a necessidade de dividir isso novamente, não precisaria importunar alguém como o senhor, com todo o respeito.

Eu via todo mundo mudando de amor como quem muda de roupa, vivendo, sorrindo, chorando e superando e eu como um imbecil, perdido em insônias, acordando toda noite desejando poder esquecer qualquer vestígio dela. Desejando e odiando aquela mulher ao mesmo tempo, uma mulher que mal se lembrava de mim, que havia mudado tanto, que já havia me enterrado como lembrança em seu imenso cemitério de ex amores. Como se pode sentir tanto ódio e tanto amor ao mesmo tempo? Porque no fundo, e isso só me piorava as coisas, eu sentia, a despeito de toda a mágoa e rancor, uma ternura imensa por ela ou pelo que eu havia a transformado pra mim.

Nunca mais vi ninguém, não podia suportar o sofrimento que eu trazia para os se importavam comigo, que me viam sofrer e me transformar aos poucos em um patético zero, uma sombra do que eu havia sido, um retalho do homem presunçoso que julgava cada um que encontrava em seu caminho. E aí que é importante, deixa eu pegar mais um uísque pra que o senhor entenda como cheguei aqui, de que forma me enredei em um redemoinho que me transformou nessa sombra que está em sua frente. 

Por Ricardo Pereira

6 comentários:

  1. Muito bom, amigo. E veja só como é a vida. Estava ouvindo agora mesmo o disco Cabaret do Rossi, do Reginaldo. É engraçado como as coisas se misturam, se cruzam e se combinam desaguando em uma outra coisa não premeditada. Percebo que, em função da trilha sonora, o texto que eu lí é diferente daquele que você escreveu. Mas gostei muito. Parabéns. Abç

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  2. Cara, que maravilha isso! Tenho certeza de que você leu um texto melhor do que ele realmente é. Porque por mais que eu tentasse passagens com um leve humor, achei que faltou leveza a esse texto. E de repente aí você fez uma junção que melhorou tudo! Valeu, cara! Abs

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  3. Texto com um ar cômico, falando de algo sério!
    É como eu digo, nunca sabemos o que vai acontecer amanhã, ainda assim precisamos viver, aproveitar os momentos sem pensar no amanhã..e o amor faz parte desse viver! Uma grande decepção ou várias sucessivas, fazem com que não só se deixe de acreditar no amor mas nas pessoas...é uma luta diária consigo mesmo deixar as pessoas entrarem na nossa vida novamente. Como cativar e se deixar cativar sem sofrer se algo não sai como gostariamos?

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  4. Oi Grazi, obrigado. Entendo o que você quis dizer sobre a necessidade de se abrir para a vida, mas também entendo nosso amigo personagem. Apesar de nunca ter passado por nada com tamanha dramaticidade, a última pancada emocional que levei me fez ter muita dificuldade em me relacionar de novo ou acreditar nas pessoas. Sinto falta de alguém do meu lado, mas, a maior parte do tempo, sinto-me aliviado de estar sozinho... Mas isso passa, tudo passa.

    Beijo

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  5. sei como se sente, sinto essa dificuldade tb! beijoss

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