"There's a fear I keep so deep / Knew it name since before I could speak (...) If some night I don't come home / Please don't think I've left you alone"- Keep The Car Running, Arcade Fire

sábado, 4 de junho de 2016

O beijo no asfalto ou Que mundo maravilhoso, não?

Escrita em 1960 pelo dramaturgo Nelson Rodrigues, O beijo no asfalto é, ainda hoje, assustadoramente atual. Em montagem primorosa dirigida por João Fonseca, com trilha original de Claudio Lins, o musical oferece ao espectador um espetáculo ágil, emocionante e principalmente cruel.

Jornalismo sensacionalista, homofobia, machismo, truculência policial e toda a hipocrisia dessa grande família tradicional chamada Brasil desfilam pelo palco durante 150 minutos de reality-horrorshow. A história de Arandir, um homem que socorre um rapaz atropelado por um ônibus e, atendendo ao último dele, beija-o na boca, é apenas o estopim para um passeio por toda a minha, a sua, a nossa sordidez.

A “bela, recatada e do lar” que vai abortar a pedido do marido, para que não ganhe peso e barriga; o pai de família que guarda a homossexualidade no fundo do armário, escondida entre a moral de meia social furada e gravatas-borboleta que nunca, em hipótese alguma, vão voar; o jornalista que carrega sua caneta com sangue e escreve em fonte cor de merda, para um povo que sorve perversidade no café da manhã, com a família reunida na mesa da cozinha, orando de mãos dadas pelo pão francês e o cadáver nosso de cada dia; o policial corrupto que consegue improvisar um porão de ditadura para cada vítima em potencial; a vizinha que preenche sua existência vazia vasculhando fuxicos e segredos alheios, sabendo-se infeliz na vida, mas radiante nas rodas – e redes – sociais. Conhecemos todos eles. Somos nós. Muito prazer.

Nós, que somos eles, estamos por aí, em todo e qualquer canto do mundo. Não era você naquele dia, comprando jornais e revistas que pingavam sangue? Não era eu naquela vez, inventando uma desculpa esfarrapada para ficar com o troco a mais que o atendente deu por engano? Não era aquela sua amiga gritando por revolução e, num outro momento, pedindo para prender manifestantes do “lado errado da luta”? Não era aquele religioso fervoroso, que aponta o dedo indicador para os prazeres do mundo, em tom de reprovação, e no outro mundo – digital – dispara cantadas e putarias mil para toda e qualquer mulher, em línguas de safadeza ininteligíveis?

Não, não era. Era o filho do vizinho.

Voltando à vaca fria, o asfalto de Nelson Rodrigues continua quente. Quase 60 anos depois de o texto em questão ganhar a vida, as páginas e os palcos brasileiros, uma multidão lotou o Palco Sesc, na Praia do Anil, durante a estreia da 12ª edição da Festa Internacional de Teatro de Angra – Fita, para duas horinhas de verdades nada secretas. Excetuando-se alguns aplausos empolgados durante as belas performances vocais dos atores e atrizes, o que se viu foi um público em silêncio quase sepulcral. Capturado pela excelência do espetáculo ou enxergando a si mesmo nos personagens da peça?

Difícil adivinhar. Ainda assim, em pelo menos alguma coisa podemos fechar a conta e passar a régua: seja na área VIP ou no fundo da tenda, no asfalto ou na estrada de terra, o beijo, meu amigo, continua sendo a véspera do escarro.

O beijo no asfalto - O musical - Crédito: Bruno Machado




Por Hugo Oliveira


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