Escrita em 1960 pelo dramaturgo
Nelson Rodrigues, O beijo no asfalto
é, ainda hoje, assustadoramente atual. Em montagem primorosa dirigida por João
Fonseca, com trilha original de Claudio Lins, o musical oferece ao espectador um
espetáculo ágil, emocionante e principalmente cruel.
Jornalismo sensacionalista,
homofobia, machismo, truculência policial e toda a hipocrisia dessa grande
família tradicional chamada Brasil desfilam pelo palco durante 150 minutos de reality-horrorshow. A história de
Arandir, um homem que socorre um rapaz atropelado por um ônibus e, atendendo ao
último dele, beija-o na boca, é apenas o estopim para um passeio por toda a
minha, a sua, a nossa sordidez.
A “bela, recatada e do lar” que
vai abortar a pedido do marido, para que não ganhe peso e barriga; o pai de
família que guarda a homossexualidade no fundo do armário, escondida entre a
moral de meia social furada e gravatas-borboleta que nunca, em hipótese alguma,
vão voar; o jornalista que carrega sua caneta com sangue e escreve em fonte cor
de merda, para um povo que sorve perversidade no café da manhã, com a família
reunida na mesa da cozinha, orando de mãos dadas pelo pão francês e o cadáver
nosso de cada dia; o policial corrupto que consegue improvisar um porão de
ditadura para cada vítima em potencial; a vizinha que preenche sua existência
vazia vasculhando fuxicos e segredos alheios, sabendo-se infeliz na vida, mas
radiante nas rodas – e redes – sociais. Conhecemos todos eles. Somos nós. Muito
prazer.
Nós, que somos eles, estamos por
aí, em todo e qualquer canto do mundo. Não era você naquele dia, comprando
jornais e revistas que pingavam sangue? Não era eu naquela vez, inventando uma
desculpa esfarrapada para ficar com o troco a mais que o atendente deu por
engano? Não era aquela sua amiga gritando por revolução e, num outro momento,
pedindo para prender manifestantes do “lado errado da luta”? Não era aquele religioso
fervoroso, que aponta o dedo indicador para os prazeres do mundo, em tom de
reprovação, e no outro mundo – digital – dispara cantadas e putarias mil para
toda e qualquer mulher, em línguas de safadeza ininteligíveis?
Não, não era. Era o filho do
vizinho.
Voltando à vaca fria, o asfalto
de Nelson Rodrigues continua quente. Quase 60 anos depois de o texto em questão
ganhar a vida, as páginas e os palcos brasileiros, uma multidão lotou o Palco
Sesc, na Praia do Anil, durante a estreia da 12ª edição da Festa Internacional
de Teatro de Angra – Fita, para duas horinhas de verdades nada secretas.
Excetuando-se alguns aplausos empolgados durante as belas performances vocais
dos atores e atrizes, o que se viu foi um público em silêncio quase sepulcral. Capturado
pela excelência do espetáculo ou enxergando a si mesmo nos personagens da peça?
Difícil adivinhar. Ainda assim,
em pelo menos alguma coisa podemos fechar a conta e passar a régua: seja na
área VIP ou no fundo da tenda, no asfalto ou na estrada de terra, o beijo, meu
amigo, continua sendo a véspera do escarro.
Por Hugo Oliveira
Adorei o texto! Muito bom Hugo!
ResponderExcluirObrigado, Ana! Ass: Hugo
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