"There's a fear I keep so deep / Knew it name since before I could speak (...) If some night I don't come home / Please don't think I've left you alone"- Keep The Car Running, Arcade Fire

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Comentário a respeito de Belchior

Acabei de descobrir que esta semana, se ainda estiver entre nós, Belchior está completando 69 anos de vida. Pode ser o excesso de trabalho, os dois choppinhos pós aulas da noite, mas fiquei sinceramente comovido.

Não há nada parecido na música popular brasileira com a trajetória de Antônio Carlos Belchior. O artifício a que sempre recorro é a alcunha de Bob Dylan brasileiro, injusto para os dois lados. Num discurso repleto de certeiras referências intertextuais, Belchior foi quem melhor traduziu em letras de canções o que foi ser brasileiro na década de 1970, seus discos desse período são irrepreensíveis. Três deles, obrigatórios na coleção (ou HD, vai saber) de qualquer interessado na construção lírica da música nacional: Alucinação (1976), Coração Selvagem (1977) e Era uma vez o homem e seu tempo (1979).

O primeiro, mais conhecido e celebrado álbum do compositor cearense, contém clássicos como a faixa título, “A palo seco”, “Velha roupa colorida” e o hino “Como nossos pais”, canção muito lembrada pela gravação de Elis Regina, mas que ganha muito em sensibilidade na voz de seu compositor. Assim como com Dylan ou Chico Buarque, artistas cujas vozes incomodam muita gente, é possível afirmar peremptoriamente: ninguém canta Belchior como Belchior.

O álbum de 1979, possivelmente o mais ambicioso da carreira do cantor, como podemos perceber desde o título, conheci através de um ex sogro. Dissertando sobre a obra do compositor com a estúpida arrogância juvenil de então, fui pego de surpresa ao desconhecer seu disco preferido. E foi encantamento à primeira audição. É, possivelmente, o álbum mais brasileiro de Belchior e, antes de qualquer leitura sociológica, o que deveria ser apresentado a qualquer gringo que quisesse entender do que é feito este país. A melancolia herdada dos portugueses em “Tudo outra vez”; o tentar pureza em meio à poluição do ar político da época em “Conheço meu lugar” e “Meu cordial brasileiro”;  o encantamento beatle na homenagem “Comentário a respeito de John”, o emocionante “Pequeno perfil de um cidadão comum” e a simplicidade brejeira de “Espacial” são veredas  que se bifurcam na tentativa de entender esse Grande Sertão que é o Brasil.

Meu preferido de sua discografia é mesmo o Coração Selvagem. Lembro-me, quando criança, de assistir encantado a meu pai escutando o vinil desse disco dizendo que na época de sua faculdade “não se escutava outra coisa”. E foi na época em que eu cursava a universidade que fui entender o porquê – não sem um pingo de inveja, ao comparar com o que meus colegas ouviam... É nesse disco que podemos perceber a qualidade que primeiro me chamou a atenção em Belchior: seu despudor e lirismo desbragado (brega, alguns cínicos diriam) ao falar de amor. A canção título é um inventário das características mais importantes do Romantismo literário, ou melhor, um espelho da alma de qualquer um que já tenha se entregado sem reservas a um amor avassalador (“Meu bem, o meu lugar é onde você quer que ele seja / Não quero o que a cabeça pensa: eu quero o que a alma deseja.”) – tudo isso cantando com emoção, alma, com moldura musical simples e aquela bateria seca tão característica do período. Há ainda a amargura de “Paralelas”; a necessidade das coisas mais simples do amor em meio ao peso de se viver ‘entre o sonho e o som’ em “Todo sujo de batom”;  nossos medos expostos em “Pequeno mapa do tempo”;  a necessidade de continuar cantando mesmo que contra a força cruel do tempo exposta em “Galos, noites e quintais”; e a trágica (esperançosa?) “Caso comum de trânsito”. Um dos discos da minha vida.


Só tive a oportunidade de vê-lo ao vivo em uma oportunidade, dividindo o palco com a banda Los Hermanos, em 2002, no Canecão, e vez por outra imagino como seria uma volta após seu exílio voluntário, uma grande turnê celebrando sua obra e, quem sabe, apresentando-a a novos admiradores. No entanto, confesso que vejo certa beleza na coerência (e sinto, sim, uma ponta de orgulho) com que Belchior sai de cena, desaparecendo num mundo em que todos querem ser onipresentes, embarcando em sua canoinha rumo à terceira margem do rio, sempre fazendo ausência, mas sua obra – o rio-rio-rio, o rio-pondo perpétuo.

Felicidades, e muito obrigado, Bigode!


Por Ricardo Pereira

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