"There's a fear I keep so deep / Knew it name since before I could speak (...) If some night I don't come home / Please don't think I've left you alone"- Keep The Car Running, Arcade Fire

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Súbito e nada mal

Ele e a mulher se arrumam e seguem para a residência de um amigo que estava fazendo aniversário. Chegam ao local e já sentem o clima de alegria. Ele bebe suas doses de uísque e, junto com a esposa, janta um delicioso bacalhau. “Só vou embora se você me expulsar!”, diz em tom de brincadeira ao aniversariante. Às 4h, madrugada de segunda para terça-feira, um táxi é acionado e o produtor, ator e compositor Luiz Carlos Miele, de 77 anos, volta para casa com a mulher... Feliz, satisfeito e pronto para morrer de um mal súbito, um dia depois.

Mais do que lamentar a morte de um importante nome da cultura e do entretenimento, a notícia fez com que eu refletisse sobre a vida que quero levar até quando o destino, deus, a natureza ou, seja lá o que for, permitir. A grama do vizinho é sempre mais verde, e seguimos romantizando certas trajetórias, baseando-nos principalmente no distanciamento que temos delas. Mesmo assim, acredito que Miele, o homem que transitou entre nomes da MPB e do show business brasileiro, entrou e saiu de cena harmoniosamente, num fim digno de palmas.

Diferente dos shows, a vida não tem espaço para ‘bis!’ ou ‘mais um!’. Ela é um espetáculo de única apresentação, de climas, gêneros e sentimentos diferentes, 25% ensaio e 75% improviso; um filme impossível de se prever o final, onde somos protagonistas e, ao mesmo tempo, espectadores. O que é mais importante? Uma caminhada digna ou um desfecho tranquilo? Não sei a resposta, mas gostaria de ter direito aos dois. Se possível, com um The End à Miele.

Muita gente quer viver até os 100 anos, e o avanço da ciência e da medicina vai tornar essa sonhada ‘marca’ ainda mais alcançável... Mas não sem alguns efeitos adversos. Consegue imaginar a festinha de aniversário? Doce não pode por conta do diabetes; salgado também não, já que a pressão arterial requer cuidados; bebidas alcoólicas nem pensar; música alta está fora de cogitação, motivada pela audição ruim; baixa frequência de amigos, já convocados pela dona morte. Um século de vida. Comemoração estranha, viu?

Talvez eu esteja exagerando. Trinta linhas para dizer o óbvio: quero viver bem e terminar minha passagem por aqui da melhor maneira possível. Sem prorrogação de dor e tristeza; sem deixar de fazer as coisas que gosto ou perder aqueles por quem tenho afeto e consideração. Partir após uma noitada com meus amigos, familiares e minha esposa. No dia seguinte, lembrando-me das conversas e gargalhadas memoráveis, da música gostosa que tocava no som e das promessas de encontros futuros, um súbito aperto no peito.

Súbito e nada mal.


Miele: a vida como um show; a morte como um grand finale




Por Hugo Oliveira

                 


Nenhum comentário:

Postar um comentário