Acabei de descobrir que esta
semana, se ainda estiver entre nós, Belchior está completando 69 anos de vida. Pode
ser o excesso de trabalho, os dois choppinhos pós aulas da noite, mas fiquei
sinceramente comovido.
Não há nada parecido na música
popular brasileira com a trajetória de Antônio Carlos Belchior. O artifício a
que sempre recorro é a alcunha de Bob Dylan brasileiro, injusto para os dois
lados. Num discurso repleto de certeiras referências intertextuais, Belchior
foi quem melhor traduziu em letras de canções o que foi ser brasileiro na
década de 1970, seus discos desse período são irrepreensíveis. Três deles,
obrigatórios na coleção (ou HD, vai saber) de qualquer interessado na construção
lírica da música nacional: Alucinação
(1976), Coração Selvagem (1977) e Era uma vez o homem e seu tempo (1979).
O primeiro, mais conhecido e
celebrado álbum do compositor cearense, contém clássicos como a faixa título, “A
palo seco”, “Velha roupa colorida” e o hino “Como nossos pais”, canção muito
lembrada pela gravação de Elis Regina, mas que ganha muito em sensibilidade na
voz de seu compositor. Assim como com Dylan ou Chico Buarque, artistas cujas
vozes incomodam muita gente, é possível afirmar peremptoriamente: ninguém canta
Belchior como Belchior.
O álbum de 1979, possivelmente o
mais ambicioso da carreira do cantor, como podemos perceber desde o título,
conheci através de um ex sogro. Dissertando sobre a obra do compositor com a
estúpida arrogância juvenil de então, fui pego de surpresa ao desconhecer seu
disco preferido. E foi encantamento à primeira audição. É, possivelmente, o álbum
mais brasileiro de Belchior e, antes de qualquer leitura sociológica, o que
deveria ser apresentado a qualquer gringo que quisesse entender do que é feito
este país. A melancolia herdada dos portugueses em “Tudo outra vez”; o tentar pureza
em meio à poluição do ar político da época em “Conheço meu lugar” e “Meu cordial
brasileiro”; o encantamento beatle na
homenagem “Comentário a respeito de John”, o emocionante “Pequeno perfil de um
cidadão comum” e a simplicidade brejeira de “Espacial” são veredas que se bifurcam na tentativa de entender esse
Grande Sertão que é o Brasil.
Meu preferido de sua discografia
é mesmo o Coração Selvagem. Lembro-me,
quando criança, de assistir encantado a meu pai escutando o vinil desse disco
dizendo que na época de sua faculdade “não se escutava outra coisa”. E foi na
época em que eu cursava a universidade que fui entender o porquê – não sem um
pingo de inveja, ao comparar com o que meus colegas ouviam... É nesse disco que
podemos perceber a qualidade que primeiro me chamou a atenção em Belchior: seu
despudor e lirismo desbragado (brega, alguns cínicos diriam) ao falar de amor. A
canção título é um inventário das características mais importantes do Romantismo
literário, ou melhor, um espelho da alma de qualquer um que já tenha se
entregado sem reservas a um amor avassalador (“Meu bem, o meu lugar é onde você
quer que ele seja / Não quero o que a cabeça pensa: eu quero o que a alma
deseja.”) – tudo isso cantando com emoção, alma, com moldura musical simples e
aquela bateria seca tão característica do período. Há ainda a amargura de “Paralelas”;
a necessidade das coisas mais simples do amor em meio ao peso de se viver ‘entre
o sonho e o som’ em “Todo sujo de batom”;
nossos medos expostos em “Pequeno mapa do tempo”; a necessidade de continuar cantando mesmo que
contra a força cruel do tempo exposta em “Galos, noites e quintais”; e a
trágica (esperançosa?) “Caso comum de trânsito”. Um dos discos da minha vida.
Só tive a oportunidade de vê-lo
ao vivo em uma oportunidade, dividindo o palco com a banda Los Hermanos, em
2002, no Canecão, e vez por outra imagino como seria uma volta após seu exílio
voluntário, uma grande turnê celebrando sua obra e, quem sabe, apresentando-a a
novos admiradores. No entanto, confesso que vejo certa beleza na coerência (e
sinto, sim, uma ponta de orgulho) com que Belchior sai de cena, desaparecendo
num mundo em que todos querem ser onipresentes, embarcando em sua canoinha rumo
à terceira margem do rio, sempre fazendo ausência, mas sua obra – o rio-rio-rio,
o rio-pondo perpétuo.
Felicidades, e muito obrigado, Bigode!
Por Ricardo Pereira