Obrigado, Black Friday: na última
sexta-feira, 27 de novembro, resolvi dar uma passadinha rápida na Lojas
Americanas do centro de Angra, para conferir a tal da promoção que todos
comentavam. Afinal de contas, apesar de apresentar um acervo relativamente fraco
quanto aos CD's, DVD's e Blu-rays, não é todo dia que o estabelecimento
apresenta um desconto de 50% em cima dos produtos citados.
A verdade é que não existe acervo
fraco para gente como eu. Sempre damos um jeitinho e acabamos encontrando algo.
Um Ed Motta aqui, um U2 ali, um David Fincher acolá. A carne é fraca e a
coleção, por mais que continue aumentando, parece sempre pequena. Pergunte para
o Ricardo aqui do blog. Tenho certeza que ele pode explicar melhor...
Enfim, vamos ao que interessa.
Das coisas que comprei, o Blu-ray Bob Dylan - The 30th Anniversary Concert
Celebration, foi uma das que mais me deu alegria. Show gravado em 16 de outubro
de 1992, no Madison Square Garden, em Nova York, o tributo conta com uma
constelação de estrelas da música pop internacional sem precedentes. "We
Are the World" é fichinha perto do que você vai ver.
Stevie Wonder, Lou Reed, George
Harrison, Johnny Cash, Eddie Vedder - Pearl Jam -, Tracy Chapman, Neil Young,
Eric Clapton, Chrissie Hynde, Tom Petty, The Band, Roger McGuinn - The Byrds -,
Richie Havens, Ron Wood - Rolling Stones - e muitos outros a serviço da
celebração das três décadas de carreira de um dos artistas mais importantes da
música americana contemporânea; do cantor, compositor e instrumentista que fez
a ponte perfeita entre o Folk e o Rock; do homem que escreveu "Like a
Rolling Stone".
Um tributo de peso |
Eu poderia escrever sobre a
maioria das performances que constam no disco, mas resolvi, desta vez, fixar-me
num dos momentos mais viscerais do tributo. A cantora irlandesa Sinead
O'Connor, então com 25 anos, havia lançado em 1990 seu segundo álbum, I Do Not Want What I Haven't Got. Nele,
uma canção do músico Prince, "Nothing Compares 2 U", ancorada por um
clipe tão simples quanto genial, alçou a jovem ao estrelato. Sinead era pop...
Assim como o papa.
O trocadilho no final do
parágrafo acima não foi gratuito. No dia 3 de outubro, apresentando-se num dos
programas humorísticos de maior audiência dos Estados Unidos, o Saturday Night
Live, ela cantou à capela a música "War", do cantor e figura maior do
Reggae, Bob Marley. Ao final da canção, Sinead puxa uma foto do papa João Paulo
II, em alusão aos casos de abusos sexuais ligados à igreja católica.
"Combata o inimigo real", ela diz, após rasgar a fotografia, sem o
conhecimento real do que aquele ato significaria para o resto de sua carreira.
Choveram protestos não apenas nos
Estados Unidos, mas em todo o mundo. Na NBC, rede de televisão que exibira o
programa, os telefonemas, aos milhares, não paravam de criticar a atitude da
moça. Será que o povo iria esquecer o ato de rebeldia da cantora? Treze dias
depois, Sinead e o resto do planeta teriam a resposta.
Sinead e a fotografia |
Na plateia, muitas palmas... E o
triplo de vaias. Ela caminha até o microfone e é seguida pelos músicos. O clima
é de tensão, e a expressão facial de Sinead não nega. Ela sorri sem graça, mira
o chão, arrisca um "obrigado" e permanece imóvel. O tecladista da
banda puxa a introdução de "I Believe in You", música de Dylan que a
irlandesa cantaria, mas a cantora pede para ele parar. Mais tensão.
Kristofferson, que assistia a apresentação do lado de uma das laterais do
palco, vai até ela e fala ao pé do ouvido de Sinead. "Não deixe que os
babacas te coloquem pra baixo". Ela diz "ok" e o piano volta a
soar. Parece que agora vai. Ledo engano.
A cantora fita a multidão e dá
alguns passos para um lado e para o outro. Está nitidamente desnorteada. Mais
uma vez, ela pede que o músico pare de tocar. Ele obedece. Sinead se aproxima
do microfone, pede para aumentar o volume e descarrega toda a raiva e o
nervosismo por meio da letra de "War", mais uma vez, apresentada
apenas com a voz.
Não é um canto, mas um grito.
Boca, olhos, sobrancelhas e nariz explodindo, num jorro de ódio genuíno. É a
cantora com o microfone, mas sozinha, contra milhares de pessoas; Sinead
mostrando que não mudou de opinião, e que não vai afrouxar, mesmo que as
consequências fossem catastróficas - e elas foram. Ela para de cantar, olha o
público por mais um momento e se retira, sendo amparada novamente por
Kristofersson. A impressão que se tem é que ela está chorando.
Tudo se desenrola muito rápido. Quatro minutos, quase um Punk Rock. Quase? Sinead sai de cena e o show, que ainda estava na metade, recomeça. Dylan aparece, lá pelo final, e é ovacionado ao cantar alguns clássicos do próprio repertório. O tributo é um sucesso.
Lendo a contracapa do livreto
incluído no Blu-ray, vejo uma homenagem a vários participantes do show, já
falecidos. Sinead, que acabou de tentar o suicídio pela terceira vez, não
consta na lista. Deveria estar, já que foi assassinada naquela noite.
Não sem luta.
Não sem luta.
Por Hugo Oliveira
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