"There's a fear I keep so deep / Knew it name since before I could speak (...) If some night I don't come home / Please don't think I've left you alone"- Keep The Car Running, Arcade Fire

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Sinead O’Connor na fogueira

Obrigado, Black Friday: na última sexta-feira, 27 de novembro, resolvi dar uma passadinha rápida na Lojas Americanas do centro de Angra, para conferir a tal da promoção que todos comentavam. Afinal de contas, apesar de apresentar um acervo relativamente fraco quanto aos CD's, DVD's e Blu-rays, não é todo dia que o estabelecimento apresenta um desconto de 50% em cima dos produtos citados.

A verdade é que não existe acervo fraco para gente como eu. Sempre damos um jeitinho e acabamos encontrando algo. Um Ed Motta aqui, um U2 ali, um David Fincher acolá. A carne é fraca e a coleção, por mais que continue aumentando, parece sempre pequena. Pergunte para o Ricardo aqui do blog. Tenho certeza que ele pode explicar melhor...

Enfim, vamos ao que interessa. Das coisas que comprei, o Blu-ray Bob Dylan - The 30th Anniversary Concert Celebration, foi uma das que mais me deu alegria. Show gravado em 16 de outubro de 1992, no Madison Square Garden, em Nova York, o tributo conta com uma constelação de estrelas da música pop internacional sem precedentes. "We Are the World" é fichinha perto do que você vai ver.

Stevie Wonder, Lou Reed, George Harrison, Johnny Cash, Eddie Vedder - Pearl Jam -, Tracy Chapman, Neil Young, Eric Clapton, Chrissie Hynde, Tom Petty, The Band, Roger McGuinn - The Byrds -, Richie Havens, Ron Wood - Rolling Stones - e muitos outros a serviço da celebração das três décadas de carreira de um dos artistas mais importantes da música americana contemporânea; do cantor, compositor e instrumentista que fez a ponte perfeita entre o Folk e o Rock; do homem que escreveu "Like a Rolling Stone".


Um tributo de peso

Eu poderia escrever sobre a maioria das performances que constam no disco, mas resolvi, desta vez, fixar-me num dos momentos mais viscerais do tributo. A cantora irlandesa Sinead O'Connor, então com 25 anos, havia lançado em 1990 seu segundo álbum, I Do Not Want What I Haven't Got. Nele, uma canção do músico Prince, "Nothing Compares 2 U", ancorada por um clipe tão simples quanto genial, alçou a jovem ao estrelato. Sinead era pop... Assim como o papa.

O trocadilho no final do parágrafo acima não foi gratuito. No dia 3 de outubro, apresentando-se num dos programas humorísticos de maior audiência dos Estados Unidos, o Saturday Night Live, ela cantou à capela a música "War", do cantor e figura maior do Reggae, Bob Marley. Ao final da canção, Sinead puxa uma foto do papa João Paulo II, em alusão aos casos de abusos sexuais ligados à igreja católica. "Combata o inimigo real", ela diz, após rasgar a fotografia, sem o conhecimento real do que aquele ato significaria para o resto de sua carreira.

Choveram protestos não apenas nos Estados Unidos, mas em todo o mundo. Na NBC, rede de televisão que exibira o programa, os telefonemas, aos milhares, não paravam de criticar a atitude da moça. Será que o povo iria esquecer o ato de rebeldia da cantora? Treze dias depois, Sinead e o resto do planeta teriam a resposta.

Sinead e a fotografia

Após a apresentação do The Clancy Brothers & Robbie O'Connell - com a participação de Tommy Makem -, o apresentador e também músico participante do show, Kris Kristofferson, declara. "Estou realmente orgulhoso de apresentar o próximo artista, cujo nome se tornou sinônimo de coragem e integridade. Senhoras e senhores, Sinead O'Connor!"

Na plateia, muitas palmas... E o triplo de vaias. Ela caminha até o microfone e é seguida pelos músicos. O clima é de tensão, e a expressão facial de Sinead não nega. Ela sorri sem graça, mira o chão, arrisca um "obrigado" e permanece imóvel. O tecladista da banda puxa a introdução de "I Believe in You", música de Dylan que a irlandesa cantaria, mas a cantora pede para ele parar. Mais tensão. Kristofferson, que assistia a apresentação do lado de uma das laterais do palco, vai até ela e fala ao pé do ouvido de Sinead. "Não deixe que os babacas te coloquem pra baixo". Ela diz "ok" e o piano volta a soar. Parece que agora vai. Ledo engano.

A cantora fita a multidão e dá alguns passos para um lado e para o outro. Está nitidamente desnorteada. Mais uma vez, ela pede que o músico pare de tocar. Ele obedece. Sinead se aproxima do microfone, pede para aumentar o volume e descarrega toda a raiva e o nervosismo por meio da letra de "War", mais uma vez, apresentada apenas com a voz.

Não é um canto, mas um grito. Boca, olhos, sobrancelhas e nariz explodindo, num jorro de ódio genuíno. É a cantora com o microfone, mas sozinha, contra milhares de pessoas; Sinead mostrando que não mudou de opinião, e que não vai afrouxar, mesmo que as consequências fossem catastróficas - e elas foram. Ela para de cantar, olha o público por mais um momento e se retira, sendo amparada novamente por Kristofersson. A impressão que se tem é que ela está chorando.

Tudo se desenrola muito rápido. Quatro minutos, quase um Punk Rock. Quase? Sinead sai de cena e o show, que ainda estava na metade, recomeça. Dylan aparece, lá pelo final, e é ovacionado ao cantar alguns clássicos do próprio repertório. O tributo é um sucesso.




Lendo a contracapa do livreto incluído no Blu-ray, vejo uma homenagem a vários participantes do show, já falecidos. Sinead, que acabou de tentar o suicídio pela terceira vez, não consta na lista. Deveria estar, já que foi assassinada naquela noite.

Não sem luta.



Por Hugo Oliveira

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