"There's a fear I keep so deep / Knew it name since before I could speak (...) If some night I don't come home / Please don't think I've left you alone"- Keep The Car Running, Arcade Fire

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Os Vinte de V


Há vinte anos, em dezembro de 91, era lançado V, meu disco preferido da Legião Urbana. Um disco conceitual, denso, melancólico. E grande parte deste clima é devido a dois fatores fundamentais à época da feitura das canções, um político, e outro pessoal. O primeiro, os efeitos do governo Collor, que, para conter o colapso econômico do país, confiscou as poupanças e contas correntes de valor acima de 1200 dólares; e o segundo, o fato do cantor Renato Russo descobrir-se portador do vírus HIV. E a partir destes dois eixos é construído o alicerce de V.

O disco anterior, As quatro estações, canta o amor de diversas formas e foi extremamente bem sucedido, com todas as suas canções tocando no rádio e pelo menos seis mega hits. Em V há uma quebra, um choque. Ao invés de canções pop, uma coleção de números melancólicos, arrastados, longos, no que ficou conhecido como o disco “progressivo” da Legião – “Bem vindos aos anos 70!”, a banda saúda no encarte.

 Mas a ‘ruptura’ não é só musical.  Se na última faixa do álbum de 89, “Se fiquei esperando meu amor passar”, o amor é simples, fortalece, o eu - lírico afirma “quando se aprende a amar, o mundo passa a ser seu”, na primeira de V, “Love Song”, Russo canta os versos de uma cantiga do século XIII: “Pois naci nunca vi Amor (...) Pero sei que me quer matar”. Corte seco, sai Annie Hall, entra Interiores.

O modo que Renato encontra para entrelaçar os vieses político e pessoal que sustentam o álbum é voltando à Idade Média para falar do mundo contemporâneo. Em “Metal contra as nuvens”, épico de doze minutos dividido em quatro partes, o compositor encarna um cavaleiro medieval (“viajamos sete léguas / por entre abismos e florestas / por Deus nunca me vi tão só”), ecoando o momento político-social do país (“quase acreditei na sua promessa / e o que vejo é fome e destruição / perdi a minha sela e a minha espada / perdi o meu castelo e minha princesa”), sua situação pessoal (“é a verdade o que assombra / o descaso o que condena / a estupidez o que destrói/ eu vejo tudo que se foi / e o que não existe mais”) e arremata, levemente esperançoso, “não olhe para trás / (...) / o mundo começa agora / apenas começamos”.

O clima medieval continua na instrumental “A ordem dos templários”, lírica, melancólica, que desemboca em “A montanha mágica”, oito minutos de um blues lento, arrastado e uma das melhores letras de Renato Russo, sobre suas experiências com a heroína. Quatro canções, quase trinta minutos e nada sequer parecido com um hit, alguma semelhança com a banda d’As quatro estações.

Mas chegamos ao meio do álbum e ele ameaça se abrir, ao menos musicalmente, com “O teatro dos vampiros” e “Sereníssima”. A primeira, aliás, belíssima, ainda lenta como quase todo o disco e com versos expressando o desencanto do homem naquele começo da década de 90: “Vamos sair – mas não temos mais dinheiro / os meus amigos todos estão procurando emprego / voltamos a viver como há dez anos atrás / e a cada hora que passa / envelhecemos dez semanas”. Eu disse começo da década de 90, mas poderia ser começo dos 2000 ou dos 10, seria empobrecer demais o disco restringi-lo à era Collor, pois são versos atemporais. Como não se identificar, hoje, com estes ou outros da mesma estirpe contidos em todo o disco?

A sétima faixa, a balada “Vento no litoral”, é de uma beleza intensa e dolorida. Versa sobre a saudade em uma melodia triste, triste, como que refletindo o clima marítimo de uma praia cinza e desolada, em que o eu - lírico se pergunta, numa das definições de saudade de que mais gosto: “Aonde está você agora / além de aqui dentro de mim?”.

Para ‘quebrar’ um pouco a tristeza reinante, uma canção leve, sobre o cotidiano de um casal que se apronta para morar junto. Mas há também sombra, pois a necessidade do eu - lírico de fazer tudo pela pessoa amada, vem do fato de “o mundo andar tão complicado”. E o encerramento, metalinguístico, é uma beleza: “quero ouvir uma canção de amor / que fale da minha situação / de quem deixou a segurança do seu mundo / por amor”.

O peso retorna em “L’âge D’or”, com guitarras blueseiras e versos fortes, abordando, mais uma vez, as drogas: “Já tentei muitas coisas, de heroína a Jesus / e tudo que já fiz foi por vaidade”, e o disco encerra com “Come share my life”, canção tradicional americana, como não poderia deixar de ser, tristíssima.

V é o álbum que contém as melhores letras de Renato Russo e, provavelmente, em que a banda está em melhor forma musical. É um disco corajoso, por suceder de forma tão diferente a “coleção de hits” que foi As quatro estações, e é, pessoalmente, um disco muito importante pra mim. Foi minha bíblia musical de melancolia e solidão durante um bom tempo, provavelmente o disco que mais ouvi dos 11 aos 21, só havendo impacto semelhante quase dez anos depois de seu lançamento, quando do lançamento de Kid A, não por acaso, outro álbum de estranhamento e ruptura, em outro nível, outro contexto.

Por Ricardo Pereira

2 comentários:

  1. Belo texto. Não sei se é meu favorito, mas acho que é o melhor. Não sabia que esse álbum era conceitual... Tem alguma "história" mesmo nele?

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  2. Obrigado, Mayra! Não é que haja uma "história" nele, é conceitual no sentido de retratar a desesperança das pessoas na era-Collor e tb por ter uma sonoridade mais "setentista", ao menos em relação ao resto da obra!

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