"There's a fear I keep so deep / Knew it name since before I could speak (...) If some night I don't come home / Please don't think I've left you alone"- Keep The Car Running, Arcade Fire

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Sangue nas trilhas


Qual o último álbum brasileiro você ouviu dotado de uma honestidade crua e poderosa? Não as belas dores blasés do rock nacional de barba e camisa listrada ou bandas/cantores em busca de voos nostálgicos ou tentativas de emularem o ‘som do momento’. Um conjunto de canções com a força e a sinceridade - ainda que em outro caminho musical - de um Fagner do final dos 70 ou de um Belchior em Coração Selvagem?

Pois foi o que encontrei em E você se sente numa cela escura, planejando a sua fuga, cavando o chão com as próprias unhas, álbum de estreia de Jair Naves. E o extenso título sintetiza com exatidão o clima do disco: desespero, medo, melancolia, o subterrâneo. Numa relação entre álcool e música, associamos uísque a uma audição de Gram Parsons ou Waylon Jennings; umas cervejas aos Ramones ou Kinks, mas aqui o negócio é outro: as canções queimam como o conhaque mais ordinário que, nas dez doses aqui propostas, leva o consumidor à dúvida entre estar no céu ou no inferno.

A primeira talagada, “Pronto pra morrer (o poder de uma mentira dita mil vezes)”, desce rasgando como convém a uma dose inicial. Guitarras agressivas, um rock urgente, a voz grave de Naves apresenta o primeiro personagem, uma espécie de aberração, “pra quem não existe chance de redenção”, arrastando-se entre traumas, desesperos e desilusões. Uma porrada. A segunda dose parece descer com mais facilidade, uma sonoridade mais ‘convencional’, bom refrão, mas o ouvinte olha em volta com cuidado e percebe que o diálogo é tenso, questões de consciência, limites ultrapassados, uma grande canção.

Antes que peça, a terceira é servida, “no fim da ladeira entre vielas tortuosas”. Com o cérebro meio amortecido, a voz e a sonoridade o enganam: “Tom Waits, é você?”. Não importa, mas é como se fosse. A mais bela canção do álbum arrasta o ouvinte para uma narrativa dolorida, uma cena vívida, quase palpável, um bêbado que desabafa e enxerga a mulher que se quer longe, se quer perto, ali, numa cadeira vazia ao lado. Sente bem a dor ouvida e antes que Waits e Pessoa se confundam, pede mais uma.

E o sujeito dirige-se à sua mãe na bonita canção. Faz com que pense na sua, no medo de perdê-la, de que não seja o filho que ela esperou que fosse, pensa em “Lady Laura” sabe-se lá porque e, no meio de tanta angústia, sorri sem jeito. Agarra-se ao copo e é transportado para os anos oitenta em “Carmem, todos falam por você”, um pós-punk perfeito. Está sentado imóvel, mas imagina-se dançando “como eu ando em campo minado” e como seria a reação dos bêbados ao redor.

“Guilhotinesco” segue a sonoridade da anterior, mas com imagens ainda mais fortes, sombrias, numa lírica diferenciada, como quem foge dos lugares comuns sem fazer esforço. De quem esta voz fala, dele, de mim? Como pode saber? Parece um personagem dostoievskiano se apresentando. E ao pensar na “Vida com V maiúsculo, vida com v minúsculo”, o álcool o leva à inevitável euforia, um contentamento desvairado, como se sua solidão e isolamento o fizessem melhor e mais poderoso do que o resto do mundo. Ao menos naqueles pouco mais de três minutos, “não existe em mim nenhum medo”.

Um “covil de cobras” – a evasão de uma realidade asfixiante através da lembrança de um doce momento vivido há tanto tempo, mas, com os olhos fechando de ebriedade, parece logo ali. Olha no espelho e vê-se envelhecido, péssimo momento para pensar na finitude. E quanto falta?

Já chapado de conhaque, pede um uísque, porque “a meu ver” e sua delicadeza merecem uma dose degustada com calma. Já havia escolhido sua preferida, mas como um bêbado tudo pode, elege a nona dose sua mais saborosa. E, sem pensar, brinca de misturar as letras de m e l a n c o l i a. Absorto em seu jogo mental, desperta no crescente do final da canção, como se toda sua solidão doesse de uma vez ali aos cinco minutos e dois segundos. Em sua idiota atividade lúdica, todas as mulheres que amou misturam-se às letras embaralhadas e tudo ao redor parece perder o sentido.

E como a “sonhar acordado”, abandona-se à bebedeira. O magnetismo da canção embala seu torpor, e a letra o faz lembrar um conto de Rubem Fonseca, um filme italiano, um fragmento de vida passado dentro de uma vida que já não o pertence, uma frase de Cohen, um espelho de Borges, uma coda repetitiva de ruídos que o leva ao fim do copo, da lucidez e do álbum.


Por Ricardo Pereira

3 comentários:

  1. Parabéns pelo texto, excelente, criativa a abordagem alcoolica. Só não entendi comparar com Belchior e Fagner no começo, não tem nada a ver.

    Daniel G.

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  2. Beleza, Daniel? Cara, eu não posso responder pelo Ricardo, mas acredito que este trecho inicial do texto já deixa tudo bem claro. "Um conjunto de canções com a força e a sinceridade - ainda que em outro caminho musical - de um Fagner do final dos 70 ou de um Belchior em Coração Selvagem?". Abraços!

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  3. Ótimo texto. Ainda não ouvi o disco, e não meio que não estava com muita vontade. No entanto, depois de ler o texto, ficarei super curiosa pra ouvi-lo.

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