"There's a fear I keep so deep / Knew it name since before I could speak (...) If some night I don't come home / Please don't think I've left you alone"- Keep The Car Running, Arcade Fire

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Curso disperso

Nem tão de repente assim, a vida não fazia mais sentido. Tudo lhe parecia indiferente, sentia-se verdadeiramente enfastiado, muito mais do que desnorteado. Alguma doença física? Não, perfeitamente saudável – por enquanto. Possuía uma boa família e amigos que o amavam sinceramente. Não tinha uma companheira porque não queria, ou melhor, conseguia. Ainda que estivesse longe do padrão de beleza reinante, possuía atributos encantadores. Era bom no que fazia, quando ainda tinha energia e força para exercê-lo.


No presente, não via mais utilidade em si na vida. Com a cabeça doendo mais do que o resto do corpo acostumou a sentir dor devido à inoperância a que foi submetido, subiu no primeiro ônibus que passou. Nem bem escolheu seu assento, viu tratar-se de uma ideia infeliz. Uma náusea terrível o acometeu, sentiu mesmo como se fosse vomitar, mal o auto se pôs em marcha. Para dominar a súbita vontade, enfiou o rosto na janela e recebeu o ar com toda a força. Em sua mente, a vontade de que fosse a última rajada de vento de sua existência.

No entanto, não é tão fácil assim livrar-se da vida e mais uma vez pensou no que poderia fazer para torná-la suportável. Já havia passado por sua cabeça diversas vezes a ideia de que talvez um casamento pudesse salvá-lo, mulheres desesperadas por isso é o que não falta no mundo e fingir-se apaixonado, convenhamos, não seria grande problema. Depois era deixar o curso desse rio de águas quase paradas seguir... acomodar-se, “ter carro do ano, TV a cores, pagar imposto, (...), filho na escola, (...), ser responsável, cristão convicto, cidadão modelo”, o ‘sonho da casa própria’... Não! De repente, a náusea voltou ainda mais forte e o vento placebo da janela entra de novo em ação.

Passa então a observar as pessoas nas ruas. Tristes figuras fazendo propaganda política, sem nem saber por que, apenas pelo pouco que lhes foi oferecido; crianças com sombrias perspectivas de futuro uniformizadas nos pontos de ônibus; um marceneiro, um técnico debruçado em uma máquina de lavar, uma senhora vendendo salgados, as pessoas em seus trabalhos cotidianos como a reforçar sua inutilidade prática. Vê uma jovem de corpo bem feito em roupas mínimas e os olhares carregados de desejos dos homens ao redor, pensa em seu melancólico pau inútil e pela primeira vez desde que entrou no ônibus esboça uma espécie de sorriso amargo.

Não quer mais nada. Não quer falar, beber, compartilhar, sair, nem continuar se entupindo de ficção, como vem fazendo há anos numa tentativa de trazer um pouco de sentido a seu vazio. Pensa no final do Dama do lotação, queria poder, tal como o marido traído, morrer para o mundo: deitar na cama, unir os pés, entrelaçar as mãos na altura do peito e ficar.

Lembrou então de um sonho recente e sentindo o vento em seu rosto, de olhos fechados, desejou com toda a força que pudesse tornar-se realidade. Nele, sua sempre frequente olheira ia pouco a pouco aumentando e tomando conta de seu corpo. Ia ficando mais e mais escurecido, mas não com a sensibilidade de pele, mas como placas-crateras que, como num tosco efeito de filme b, ao dominar todo o corpo, ia, de cima para baixo, desfazendo-se, esfarelando-se, destituindo sua forma humana de sentido. Alcançando enfim o alívio de alcançar a igualdade entre o que lhe sobrava em corpo e faltava em espírito.


 Por Ricardo Pereira

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