"There's a fear I keep so deep / Knew it name since before I could speak (...) If some night I don't come home / Please don't think I've left you alone"- Keep The Car Running, Arcade Fire

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Conversas com Riobaldo


Seis e dezesseis da manhã, domingo de carnaval, toca a campainha do meu apartamento. Não havia dúvida, só poderia ser ele. Depois de uma ausência significativa, encontro-me novamente com um companheiro de eternidade: Riobaldo.

Olha desconfiado, diz que pareço cansado, quer saber como me encontro na vida, se mais pra alegria ou pro desassossego. Comento o quanto às vezes tendo a me sentir mais velho do que sou e minha dificuldade no trato com as pessoas. Recebo como resposta um olhar na fronteira entre a dureza e a placidez: “Se não, o senhor me diga: preto é preto? branco é branco? Ou: quando a velhice começa, surgindo de dentro da mocidade.” E prossegue, com o intuito de me tranqüilizar: “gostar exato das pessoas, a gente só gosta, mesmo, puro, é sem se conhecer demais socialmente...”

Conto da minha vida recente, desde a última vez em que estivemos juntos. Falo do meu medo de ter me acostumado à solidão, de ter feito do meu cantinho o Sertão, sobre flores nascendo no canto de meu quarto escuro... Entendendo tudo, Riobaldo sorri: “Acho que o espírito da gente é cavalo que escolhe estrada: quando ruma pra tristeza e morte, vai não vendo o que é bonito e bom.” Surpreende ao elogiar a canção da Gillian Welch (“uma tristeza que até alegra”) e continua: “o correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.”

Parecendo saber que me inquietava a dúvida sobre se as diferenças entre as pessoas seriam um entrave para o amor, indaga: “Quem sabe direito o que uma pessoa é? Antes sendo: julgamento é sempre defeituoso, porque o que a gente julga é o passado. A gente só sabe bem aquilo que não entende...” E antes que eu pudesse falar qualquer coisa: “O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão.” E, mais uma vez, sublinhou: “Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.”

Foram horas de conversa, sobre o mundo, as pessoas, o mal, o bem. Elogiou meu silêncio (“O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais.”), minha cultura (sem saber – ou sabendo – que esta suposta erudição é nada perto de sua simplicidade e sabedoria; aliás, conversando com Riobaldo, fico com a sensação de que o mesmo é mais sábio até do que seu criador...), mas deixou diversos alertas contra meus receios e ansiedade: “O senhor escute meu coração, pegue no meu pulso. O senhor avista meus cabelos brancos...Viver – não é? – é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo.”

Não quis se alongar muito quando comecei a falar de saudade. “O senhor sabe? Já tenteou sofrido o ar que é saudade? Diz-se que tem saudade de ideia e saudade de coração...” Notei que estava em vias de ir embora, sem despedidas, pois “despedir dá febre”, e fiquei pensando na importância de Riobaldo na minha vida, no quanto nossas conversas eram cada vez mais fundamentais, do quanto suas palavras reverberam em mim, traduzindo-me ao falar de si. Mais uma vez, como a saber do que eu pensava, falou: “amigo... é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por quê é que é."

E dirigiu-se para a porta, a me deixar com saudade antecipada e certeza de muitos encontros até o fim da minha existência... Ainda virou e com a voz só possível a um homem “após as tempestades”, deixou no ar: “A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro...”. E foi, deixando sua presença marcante por todo meu dia e a reflexão de que a vida é, sim, muito perigosa, mas com as companhias e as palavras certas, pode ter o seu tanto de beleza e sentido. Ou, parafraseando meu visitante, “esta vida está cheia de ocultos caminhos. Se o senhor souber, sabe; não sabendo, não me entenderá...”. 


 Por Ricardo Pereira

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