Nem tão de repente assim, a vida
não fazia mais sentido. Tudo lhe parecia indiferente, sentia-se verdadeiramente
enfastiado, muito mais do que desnorteado. Alguma doença física? Não,
perfeitamente saudável – por enquanto. Possuía uma boa família e amigos que o
amavam sinceramente. Não tinha uma companheira porque não queria, ou melhor, conseguia.
Ainda que estivesse longe do padrão de beleza reinante, possuía atributos
encantadores. Era bom no que fazia, quando ainda tinha energia e força para
exercê-lo.
No presente, não via mais
utilidade em si na vida. Com a cabeça doendo mais do que o resto do corpo
acostumou a sentir dor devido à inoperância a que foi submetido, subiu no
primeiro ônibus que passou. Nem bem escolheu seu assento, viu tratar-se de uma
ideia infeliz. Uma náusea terrível o acometeu, sentiu mesmo como se fosse
vomitar, mal o auto se pôs em
marcha. Para dominar a súbita vontade, enfiou o rosto na
janela e recebeu o ar com toda a força. Em sua mente, a vontade de que fosse a
última rajada de vento de sua existência.
No entanto, não é tão fácil assim
livrar-se da vida e mais uma vez pensou no que poderia fazer para torná-la
suportável. Já havia passado por sua cabeça diversas vezes a ideia de que
talvez um casamento pudesse salvá-lo, mulheres desesperadas por isso é o que
não falta no mundo e fingir-se apaixonado, convenhamos, não seria grande
problema. Depois era deixar o curso desse rio de águas quase paradas seguir...
acomodar-se, “ter carro do ano, TV a cores, pagar imposto, (...), filho na escola,
(...), ser responsável, cristão convicto, cidadão modelo”, o ‘sonho da casa
própria’... Não! De repente, a náusea voltou ainda mais forte e o vento placebo
da janela entra de novo em ação.
Passa então a observar as pessoas
nas ruas. Tristes figuras fazendo propaganda política, sem nem saber por que,
apenas pelo pouco que lhes foi oferecido; crianças com sombrias perspectivas de
futuro uniformizadas nos pontos de ônibus; um marceneiro, um técnico debruçado
em uma máquina de lavar, uma senhora vendendo salgados, as pessoas em seus
trabalhos cotidianos como a reforçar sua inutilidade prática. Vê uma jovem de
corpo bem feito em roupas mínimas e os olhares carregados de desejos dos homens
ao redor, pensa em seu melancólico pau inútil e pela primeira vez desde que
entrou no ônibus esboça uma espécie de sorriso amargo.
Não quer mais nada. Não quer
falar, beber, compartilhar, sair, nem continuar se entupindo de ficção, como
vem fazendo há anos numa tentativa de trazer um pouco de sentido a seu vazio.
Pensa no final do Dama do lotação,
queria poder, tal como o marido traído, morrer para o mundo: deitar na cama,
unir os pés, entrelaçar as mãos na altura do peito e ficar.
Lembrou então de um sonho recente
e sentindo o vento em seu rosto, de olhos fechados, desejou com toda a força
que pudesse tornar-se realidade. Nele, sua sempre frequente olheira ia pouco a
pouco aumentando e tomando conta de seu corpo. Ia ficando mais e mais
escurecido, mas não com a sensibilidade de pele, mas como placas-crateras que,
como num tosco efeito de filme b, ao dominar todo o corpo, ia, de cima para
baixo, desfazendo-se, esfarelando-se, destituindo sua forma humana de sentido.
Alcançando enfim o alívio de alcançar a igualdade entre o que lhe sobrava em
corpo e faltava em espírito.
Por Ricardo Pereira
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