Em seu pequeno cômodo, dezenas de
discos abertos com os encartes espalhados, uma garrafa de uísque barato
faltando pouco menos de um terço para ser esvaziada, um ar saturado de
melancolia e desgaste. Olhava com um sorriso falseado a garota de programa que
escolhera para passar seu aniversário de 41 anos com ele sair batendo a porta e
o chamando de ‘bêbado’ e ‘brocha’ enquanto se afastava.
Sem a inútil companhia feminina,
sobraram ele e suas reminiscências. Há tempos havia fugido, abandonado suas
fortalezas para não mais pensar na vida que tanto o atormentava. Sabia-se o
retrato da decadência, mas não se arrependia nem por um instante de suas decisões
e de como havia chegado àquele estado.
Segurando seu destilado de
destino duvidoso, parou repentinamente em frente ao único espelho, partido ao
meio, que possuía em seu ambiente. A barba mal feita, o cabelo escorrido e
seboso, a pele oleosa, suas rugas e olheiras – marcas de padecimento – deixavam-no
sem poder evitar um sorriso sorrateiro ao imaginar o que suas ex-mulheres
diriam se o encontrassem ao acaso numa esquina qualquer, hipótese remota devido
à distância que se encontrava de todas elas.
Sua memória prodigiosa guardava o
momento exato em que o encanto fora quebrado de cada um de seus
relacionamentos: uma falta de respeito aqui, uma traição pra lá, o descaso
lento e dilacerante feito um soro pérfido. Armazenava cada reminiscência do início
do fim como um preso incomunicável marca na parede da cela o número de dias desde
que se encontra detido.
E o que um dia foi raiva,
desgosto, esgotamento, desilusão, resiste em suas lembranças como bolor, poeira
que se deixa juntar por falta de limpeza. Pede que Cartola se cale, chama
Coltrane a campo e adormece anestesiado, sonhando vagamente com antigos almoços
dominicais em família, palavra riscada de seu cancioneiro por orgulho e
vergonha.
Naquele exato momento,
desacordado e inconsciente, não percebe uma lágrima represada insistente, que,
lutando mais do que supunha aguentar, avança em seu rosto crispado e cansado da
vida.
Por Ricardo Pereira
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