Vez ou outra sou vítima de um sonho delicioso enquanto dura e frustrante quando desperto. Sinto-me em uma loja de discos e encontro algum álbum inédito de uma das bandas de que mais gosto, um bootleg desconhecido com versões alternativas de canções conhecidas e outras inéditas. Já tive sonhos tão reais sobre isso na adolescência que chegava a despertar e procurar pelo disco sonhado na minha coleção até me tocar de que não era real. Posso, inclusive, recordar capas sonhadas de discos imaginários do Radiohead e do Doors.
Pois este ano o sonho, de certa forma, tornou-se realidade quando resolvi me aprofundar no universo da banda inglesa The Kinks. Ao ouvir pela primeira vez o Something Else by The Kinks, tive a sensação de estar em contato com um disco inédito dos Beatles gravado ali logo após o Rubber Soul. Toda aquela inventividade, belas melodias e excelentes letras só poderiam ser obra dos Fab Four - é ou não é o Paul McCartney cantando "Afternoon Tea"? A verdade é que encontrei em Ray Davies um compositor da linhagem da melhor tradição do rock inglês, capaz de compor canções tão impactantes quanto as de Lennon, McCartney ou Pete Townshend.
Nunca havia me interessado em conhecer mais do Kinks. Conhecia apenas "All day and all of the night" e "You really got me" e, apesar de serem boas músicas, não me instigavam a querer mais. Imaginava o Kinks como banda de bons riffs, rockinhos divertidos e nada mais. Por isso, ao me deparar com as maravilhas contidas em Something Else by The Kinks, fiquei tão impressionado. O álbum, lançado em 67, viaja na contramão dos rivais Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, Are you experienced?, Forever Changes ou The Doors. Para os irmãos Davies não havia o deslumbramento lisérgico, o desejo de ser vanguarda ou "atravessar para o outro lado". Ao contrário, cantam a nostalgia, a manutenção de uma certa tradição inglesa, o desejo da paz de um campo gramado ou mesmo da solidão. E são, ao mesmo tempo, dotados da típica ironia que associamos ao melhor humor inglês.
O disco todo é bom. Ray Davies é excelente letrista, compunha crônicas da vida proletária inglesa com talento admirável, como em "David Watts", "Two Sisters" ou "End of the season". De cara, encantei-me por duas canções, a chapada "Lazy Old Sun" e a belíssima "Waterloo Sunset", que fecha essa pequena obra de arte do rock inglês.
Encantado com o disco, fui ao próximo, The Village Green Preservation Society, de 68, e encontrei um trabalho ainda melhor, mais coeso e bem resolvido. Os temas trabalhados no álbum anterior aparecem aqui de forma ainda mais brilhante, como a elegia aos encantamentos da infância na faixa-título; a amarga reflexão sobre os amigos de infância que se distanciam em "Do you remember Walter"; as críticas (cada vez mais atuais) sobre os que se preocupam mais em registrar os momentos do que vivê-los contidas em "Picture Book" e "People take pictures of each other"; e a divertida "All of My Friends Were There", que parece saída de um filme do Monty Python, sobre o medo do palco. Há ainda as nostálgicas "Last of the Steam-powered Trains", "Sitting by the Riverside" e "Village Green", bons rocks como "Johnny Thunder" e "Starstruck", e a esquisitamente graciosa "Phenomenal Cat". Uma obra-prima.
No momento, venho conhecendo o temático Arthur (Or the Decline and Fall of the British Empire) e o algo country Muswell Hillbillies. Dois outros bons álbuns que volto a falar quando estiver mais íntimo. Por enquanto, sigo sonhando acordado com discos tão maravilhosos quanto subestimados desta grande banda.
God Save The Kinks! |
Por Ricardo Pereira