Qual o último álbum brasileiro
você ouviu dotado de uma honestidade crua e poderosa? Não as belas dores blasés
do rock nacional de barba e camisa listrada ou bandas/cantores em busca de voos
nostálgicos ou tentativas de emularem o ‘som do momento’. Um conjunto de
canções com a força e a sinceridade - ainda que em outro caminho musical - de um Fagner do final dos 70 ou de um
Belchior em Coração Selvagem ?
Pois foi o que encontrei em E você se sente numa cela escura, planejando a sua fuga, cavando o chão com as próprias unhas, álbum de estreia de Jair Naves. E o extenso título
sintetiza com exatidão o clima do disco: desespero, medo, melancolia, o
subterrâneo. Numa relação entre álcool e música, associamos uísque a uma
audição de Gram Parsons ou Waylon Jennings; umas cervejas aos Ramones ou Kinks,
mas aqui o negócio é outro: as canções queimam como o conhaque mais ordinário
que, nas dez doses aqui propostas, leva o consumidor à dúvida entre estar no
céu ou no inferno.
A primeira talagada, “Pronto pra
morrer (o poder de uma mentira dita mil vezes)”, desce rasgando como convém a
uma dose inicial. Guitarras agressivas, um rock urgente, a voz grave de Naves
apresenta o primeiro personagem, uma espécie de aberração, “pra quem não existe
chance de redenção”, arrastando-se entre traumas, desesperos e desilusões. Uma
porrada. A segunda dose parece descer com mais facilidade, uma sonoridade mais
‘convencional’, bom refrão, mas o ouvinte olha em volta com cuidado e percebe
que o diálogo é tenso, questões de consciência, limites ultrapassados, uma
grande canção.
Antes que peça, a terceira é
servida, “no fim da ladeira entre vielas tortuosas”. Com o cérebro meio
amortecido, a voz e a sonoridade o enganam: “Tom Waits, é você?”. Não importa,
mas é como se fosse. A mais bela canção do álbum arrasta o ouvinte para uma
narrativa dolorida, uma cena vívida, quase palpável, um bêbado que desabafa e
enxerga a mulher que se quer longe, se quer perto, ali, numa cadeira vazia ao
lado. Sente bem a dor ouvida e antes que Waits e Pessoa se confundam, pede mais
uma.
E o sujeito dirige-se à sua mãe
na bonita canção. Faz com que pense na sua, no medo de perdê-la, de que não
seja o filho que ela esperou que fosse, pensa em “Lady Laura” sabe-se lá porque
e, no meio de tanta angústia, sorri sem jeito. Agarra-se ao copo e é transportado
para os anos oitenta em “Carmem, todos falam por você”, um pós-punk perfeito.
Está sentado imóvel, mas imagina-se dançando “como eu ando em campo minado” e
como seria a reação dos bêbados ao redor.
“Guilhotinesco” segue a
sonoridade da anterior, mas com imagens ainda mais fortes, sombrias, numa
lírica diferenciada, como quem foge dos lugares comuns sem fazer esforço. De
quem esta voz fala, dele, de mim? Como pode saber? Parece um personagem
dostoievskiano se apresentando. E ao pensar na “Vida com V maiúsculo, vida com v
minúsculo”, o álcool o leva à inevitável euforia, um contentamento desvairado,
como se sua solidão e isolamento o fizessem melhor e mais poderoso do que o
resto do mundo. Ao menos naqueles pouco mais de três minutos, “não existe em mim
nenhum medo”.
Um “covil de cobras” – a evasão
de uma realidade asfixiante através da lembrança de um doce momento vivido há
tanto tempo, mas, com os olhos fechando de ebriedade, parece logo ali. Olha no
espelho e vê-se envelhecido, péssimo momento para pensar na finitude. E quanto
falta?
Já chapado de conhaque, pede um
uísque, porque “a meu ver” e sua delicadeza merecem uma dose degustada com
calma. Já havia escolhido sua preferida, mas como um bêbado tudo pode, elege a
nona dose sua mais saborosa. E, sem pensar, brinca de misturar as letras de m e
l a n c o l i a. Absorto em seu jogo mental, desperta no crescente do final da
canção, como se toda sua solidão doesse de uma vez ali aos cinco minutos e dois
segundos. Em sua idiota atividade lúdica, todas as mulheres que amou
misturam-se às letras embaralhadas e tudo ao redor parece perder o sentido.
E como a “sonhar acordado”,
abandona-se à bebedeira. O magnetismo da canção embala seu torpor, e a letra o
faz lembrar um conto de Rubem Fonseca, um filme italiano, um fragmento de vida
passado dentro de uma vida que já não o pertence, uma frase de Cohen, um
espelho de Borges, uma coda repetitiva de ruídos que o leva ao fim do copo, da lucidez e
do álbum.
Por Ricardo Pereira