Seis e dezesseis da manhã,
domingo de carnaval, toca a campainha do meu apartamento. Não havia dúvida, só
poderia ser ele. Depois de uma ausência significativa, encontro-me novamente
com um companheiro de eternidade: Riobaldo.
Olha desconfiado, diz que pareço
cansado, quer saber como me encontro na vida, se mais pra alegria ou pro desassossego.
Comento o quanto às vezes tendo a me sentir mais velho do que sou e minha
dificuldade no trato com as pessoas. Recebo como resposta um olhar na fronteira
entre a dureza e a placidez: “Se não, o senhor me diga: preto é preto? branco é
branco? Ou: quando a velhice começa, surgindo de dentro da mocidade.” E
prossegue, com o intuito de me tranqüilizar: “gostar exato das pessoas, a gente
só gosta, mesmo, puro, é sem se conhecer demais socialmente...”
Conto da minha vida recente,
desde a última vez em que estivemos juntos. Falo do meu medo de ter me
acostumado à solidão, de ter feito do meu cantinho o Sertão, sobre flores
nascendo no canto de meu quarto escuro... Entendendo tudo, Riobaldo sorri:
“Acho que o espírito da gente é cavalo que escolhe estrada: quando ruma pra
tristeza e morte, vai não vendo o que é bonito e bom.” Surpreende ao elogiar a
canção da Gillian Welch (“uma tristeza que até alegra”) e continua: “o correr
da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.”
Parecendo saber que me inquietava
a dúvida sobre se as diferenças entre as pessoas seriam um entrave para o amor,
indaga: “Quem sabe direito o que uma pessoa é? Antes sendo: julgamento é sempre
defeituoso, porque o que a gente julga é o passado. A gente só sabe bem aquilo
que não entende...” E antes que eu pudesse falar qualquer coisa: “O senhor...
Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não
estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre
mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso
que me alegra, montão.” E, mais uma vez, sublinhou: “Qualquer amor já é um
pouquinho de saúde, um descanso na loucura.”
Foram horas de conversa, sobre o
mundo, as pessoas, o mal, o bem. Elogiou meu silêncio (“O senhor sabe o que o
silêncio é? É a gente mesmo, demais.”), minha cultura (sem saber – ou sabendo –
que esta suposta erudição é nada perto de sua simplicidade e sabedoria; aliás,
conversando com Riobaldo, fico com a sensação de que o mesmo é mais sábio até
do que seu criador...), mas deixou diversos alertas contra meus receios e
ansiedade: “O senhor escute meu coração, pegue no meu pulso. O senhor avista
meus cabelos brancos...Viver – não é? – é muito perigoso. Porque ainda não se
sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo.”
Não quis se alongar muito quando
comecei a falar de saudade. “O senhor sabe? Já tenteou sofrido o ar que é
saudade? Diz-se que tem saudade de ideia e saudade de coração...” Notei que
estava em vias de ir embora, sem despedidas, pois “despedir dá febre”, e fiquei
pensando na importância de Riobaldo na minha vida, no quanto nossas conversas
eram cada vez mais fundamentais, do quanto suas palavras reverberam em mim,
traduzindo-me ao falar de si. Mais uma vez, como a saber do que eu pensava,
falou: “amigo... é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por quê é que
é."
E dirigiu-se para a porta, a me
deixar com saudade antecipada e certeza de muitos encontros até o fim da minha
existência... Ainda virou e com a voz só possível a um homem “após as
tempestades”, deixou no ar: “A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do
sertão é tomando conta dele a dentro...”. E foi, deixando sua presença marcante
por todo meu dia e a reflexão de que a vida é, sim, muito perigosa, mas com as
companhias e as palavras certas, pode ter o seu tanto de beleza e sentido. Ou, parafraseando meu visitante, “esta vida está cheia de ocultos caminhos. Se o senhor
souber, sabe; não sabendo, não me entenderá...”.
Por Ricardo Pereira